Sunday, May 21, 2006

As cores da cidade na América Portuguesa: um estudo iconográfico.

Autor: Nelson Pôrto Ribeiro.
(publicado originalmente in: XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte – Anais. Belo Horizonte. 2005. meio digital. ISBN: 85-7654-019-3).

Introdução.
Sempre que possível a arquitetura do passado tirou partido dos materiais de construção chamados de materiais nobres; a textura e a coloração desses materiais eram incorporados ao aspecto final da construção. Os romanos foram se não os primeiros, ao menos os mais hábeis em conceberem revestimentos de acabamento com o uso de pedras nobres: mármores, pórfiros egípcios e alabastros e a tirarem partido da composição possível de elementos distintos, aplicavam essas pedras em mosaicos, em placas e até mesmo em apuradíssimas placas curvas. Evidentemente uma arquitetura desse tipo era fruto não apenas de um alto desenvolvimento das técnicas e da sociedade em geral, como também das possibilidades materiais que as condições locais possibilitavam. Antes do advento da Revolução Industrial e do transporte a vapor a possibilidade da importação de materiais de construção era bastante limitada – com a exceção evidentemente de materiais manuseáveis como pigmentos ou de materiais para obras especialmente importantes para a administração local.

A cidade tinha assim, uma coloração, um aspecto cromático, fortemente regional. Regiões muito pobres na variação de seus materiais construtivos e muito extensas, tal como o norte da África, por exemplo, apesar de diferenças na forma arquitetônica determinadas por aspectos e costumes culturais distintos, apresentavam uma arquitetura de cores e texturas muito similares; enquanto regiões menos extensas, mas mais ricas em diversidade de material pétreo, embora mais próximas nas formas arquitetônicas – tais como as produzidas pelo Renascimento italiano no século XV – não deixavam de refletir uma variação significativa no tratamento final de suas superfícies, tal como o proporcionado pelos mármores verdes da região de Florença e os calcários vermelhos (rossos) de Verona.

A Cidade na América Portuguesa.
A cidade na América portuguesa não foi exceção, ficou bastante sujeita a restrições proporcionadas por um desenvolvimento limitado tanto da sociedade em geral como das suas técnicas em particular (não tanto da mão de obra, mas da inexistência de uma indústria) e pela ‘pobreza’ material no campo construtivo que o litoral brasileiro apresentava, ao menos ‘pobreza’ no material geológico disponível à época, pois a costa brasileira caracteriza-se por apresentar predominantemente um material de natureza gnáissico não muito fácil de ser trabalhado artisticamente enquanto cantaria, e que era utilizado, portanto, com parcimônia em locais específicos da construção; como cunhais, vergas e ombreiras, assim como de uma forma irrestrita enquanto pedra de mão na execução de alvenarias a serem revestidas posteriormente. A pedra vai aparecer enquanto revestimento predominantemente das superfícies de fachada, apenas em determinadas situações: em algumas regiões nas quais se apresentou a existência de uma pedra branda boa para os trabalhos de cantaria, mas que, em geral, são pedras de coloração pobre e uniforme, como os calcários e grés (arenitos) do nordeste ou a pedra sabão de Minas; e em situações muito especiais, tal como na fachada e no interior da igreja dos jesuítas de Salvador em que o lioz veio todo de Portugal.

A maior parte, portanto, da nossa arquitetura, civil, religiosa ou militar, foi constituída de alvenarias posteriormente revestidas com argamassas, sejam alvenarias de pedra de mão, sejam paredes de terra.

É sabido que os portugueses na América só extraiam a cal dos mananciais conchíferos (sambaquis etc...), tarefa muito mais fácil do que a extração a partir de uma jazida de calcário. Ainda no final do século XIX o engenheiro André Rebouças nos informa que este material em determinadas regiões ainda era predominantemente extraído de fontes biogênicas como os recifes, por exemplo, que bordejam o litoral nordestino (REBOUÇAS. 1885. p.12). Decorre daí o fato de que as cidades do litoral se caracterizaram por construções em alvenarias de pedral e cal que receberam revestimentos argamassados e caiados com emprego da cal extraída de conchas; enquanto nas vilas do interior – onde a cal se fazia rara devido à necessidade de um transporte dispendioso a base de lombo de burro – as técnicas construtivas predominantes eram aquelas variantes da arquitetura de terra e onde o acabamento muitas vezes se fazia com argamassas terrosas que na maior parte das vezes não recebiam nenhum tratamento final do tipo caiação (RIBEIRO. 2003). Nestas vilas, as paredes caiadas dos muros dos prédios mais importantes misturavam-se com as tonalidades ocres das construções populares tal como se pode ver na fartamente ilustrada obra de Reis Filho, em especial imagens das vilas de São Paulo, Vila Boa de Goiás e Vila do Bom Jesus de Cuiabá (REIS FILHO. 2000).

O predomínio de uma arquitetura revestida de argamassa e caiada - por força das características deste material - naturalmente levou a uma cidade onde a cor branca tendia a predominar com a presença de alguns poucos tons terrosos. Tons terrosos provenientes das argamassas de revestimento a base de argila, mas também dos únicos pigmentos possíveis de serem usados com segurança com a cal. A respeito dos pigmentos naturais disponíveis à época para obtenção da cor, Aguiar & Henriques nos informam que eram basicamente de três tipos: (I) terras, geralmente terras minerais compostas por diferentes tipos de óxidos, sulfitos e carbonatos (etc.), já corroídos na natureza, logo mais resistentes e estáveis quimicamente; (II) pigmentos metálicos e (III) pigmentos orgânicos. Estes últimos, ambos bem menos resistentes que as terras, já que são (digamos assim) ‘corroídos’ pela cal e mais facilmente afetados pela exposição solar e aos agentes atmosféricos (AGUIAR & HENRIQUES. 1994. p. 257).

Os pigmentos metálicos e os orgânicos que possuíam um espectro cromático mais variado do que os terrosos, não se adaptavam, portanto, ao meio alcalino da cal e eram utilizados apenas em tintas que tinham como veículo, distintos tipos de cola: as têmperas ou então o óleo de linhaça, base da tinta a óleo. As primeiras tinham a vantagem de terem um bom custo, mas a desvantagem de serem solúveis em água e, portanto, inadequadas para o exterior das edificações; já as segundas eram de ótima resistência às intempéries, mas de custo elevado, pois no período colonial precisavam ser importadas o que fazia com o que seu uso fosse restrito à proteção de madeiras e ferragens, onde a sua participação era indispensável. Dessa forma sobrava como única alternativa viável para as paredes externas revestidas de argamassa, as caiações, as quais por sua vez aceitavam apenas um espectro muito reduzido de cores.

A iconografia existente da cidade na América portuguesa não deixa dúvidas quanto ao seu aspecto colorístico, ela era predominantemente monocromática, ou pelo menos variando entre uma gama extremamente reduzida de cores: do branco ao ocre – entendendo o ocre como uma variedade de terras finas que podem apresentar tonalidades distintas e pardacentas tanto tirantes a amarelo como ao roxo. Evidentemente não temos a pretensão aqui de ensaiar examinar este conjunto tão vasto de representações e tão mal estudado ainda para os propósitos deste artigo. Vamos nos limitar a fazer uma breve incursão na iconografia existente sobre a cidade do Rio de Janeiro, a mais importante cidade portuguesa na América a partir da segunda metade do século XVIII e que manteve esta importância como capital do império e da república, pelo menos até o final da segunda metade do século XX.

A Capital da América Portuguesa.
Na vasta documentação iconográfica desta cidade existente a partir do século XVI e proveniente não apenas de portugueses, mas também de estrangeiros, em especial franceses, grande parte diz respeito a mapas cartográficos e prospectos com objetivos militares, nem sempre servindo aos nossos propósitos.

Uma conhecida pintura de Leandro Joaquim (Fig. 01) datada do final do século XVIII mostra com detalhes um Largo do Paço onde as fachadas da Igreja do Carmo e a da Ordem Terceira, aos fundos, tal como a muralha do cais e o chafariz de Valentim, em primeiro plano, aparecem totalmente revestidos de cantaria. A respeito de tais obras excepcionais, nota-se em especial a de engenharia portuária, que impressionava bastante e que recebeu o epíteto de “a noble stone quay” por um viajante inglês que lá esteve no final do século XVIII e que observou que o granito de revestimento, por possuir uma grande quantidade de mica, afetava injuriosamente a vista quando havia incidência dos raios solares (BARROW. 1806, p.79). Com exceção destas construções de caráter religioso e de engenharia portuária, todas as demais construções desta importante parte da cidade eram em alvenarias revestidas com argamassas e caiadas de branco, com os indefectíveis elementos em cantaria de gneisse – cunhais, vergas etc... – incluindo entre estas construções os importantes Palácio do Vice-Rei e o Convento das carmelitas. Observe-se a peculiaridade da cúpula azul da torre do Carmo, efeito obtido muito provavelmente com a utilização do anil, planta da família dos índigos e que propiciava um pigmento orgânico algumas vezes utilizado adicionado à cal - apesar de uma usual descoloração rápida - outras, ao óleo de linhaça aplicado em esquadrias de madeira.






A série de aquarelas de Thomas Ender talvez seja, sob o ponto de vista documental, o mais importante conjunto iconográfico desta cidade. Artista experiente, Ender acompanhava a missão de naturalistas austríacos que vieram com a arquiduquesa Leopoldina e se supunha, para os propósitos científicos da época, que seus desenhos fossem suficientemente objetivos e realistas. Apesar de ter chegado em 1817, a cidade que Ender retrata ainda é a cidade do século XVIII, a qual só vai sofrer modificações importantes na sua aparência, implementadas pela corte residente, a partir da segunda década do XIX, como conseqüência da chegada da Missão Francesa. Esta cidade, em suas vistas de conjunto, aparece sempre imaculadamente branca, seja nas construções religiosas nas militares ou nas residências palacianas. Em algumas vistas de ruas (Fig.02), onde é possível vislumbrar-se detalhes, verificamos que a cor estava presente em elementos específicos da arquitetura; portas, ombreiras, balcões, gelosias, todos estes elementos em madeira onde o tratamento usual dado, a base de óleo de linhaça, permitia a adição de pigmentos minerais e orgânicos; o vermelho dos óxidos de ferro, o azul do anil, os verdes minerais etc... As aquarelas de Debret também dessa época confirmam a variedade cromática presente apenas nestes elementos localizados.



A Cidade Imperial.
A principal alteração cromática advinda com o neoclassicismo foi o uso mais efetivo da coloração amarelada, oriunda das terras finas acrescentadas à cal, coloração embora já conhecida, até então muito pouco explorada – com exceção evidentemente das cores terrosas próprias de uma arquitetura de terra não caiada.

Parece que o processo usual de classicização de uma antiga construção ‘colonial’ envolvia algumas fases que incluíam necessariamente a transformação de vergas retas de portas e janelas em arcos plenos aparentes; os antigos telhados com largos beirais que eram encurtados e passavam a serem ocultos por platibandas acima das cimalhas ou por frontões triangulares; e as alvenarias, que eram caiadas com o uso de pigmentos ocres amarelados.

Tanto a documentação iconográfica existente, assim como a documentação escrita – usual no século XIX na forma de manuais, parece corroborar o fato de que também a cidade neoclássica era monocromática, abandonando, contudo, o branco colonial pelas tonalidades amareladas. Este fato é observável desde os primórdios do neoclassicismo como no Projeto da Praça do Comércio de Grandjean, onde a tonalidade amarelada pardacenta era obtida através de uma utilização cuidadosa de um arenito conhecido como Ipanema e trazido de longe, a lombo de burro, provavelmente da região de São Paulo,onde existem jazidas; como nas construções posteriores da fase imperial do neoclassicismo, como o monumental Hospício D. Pedro II (Fig.03). É possível que em algumas pinturas do final do século, de caráter mais romântico, o aspecto colorístico das fachadas esteja fortemente alterado pelos efeitos luminotécnicos da luz solar, contudo, mesmo essas representações nos informam de que a diversidade cromática não encontrava campo nesta cidade.



Representações de conjunto (panorâmicas) ao longo do século XIX corroboram estas afirmações. O Rio de Janeiro continuava uma cidade essencialmente branca. O branco era presente principalmente nas casas e casebres da população menos favorecida. Regiões de caráter mais popular como a Lapa e o Valongo, por exemplo, mantiveram as características coloniais de suas construções – entre elas a coloração branca – até o final do século ou mesmo além (Fig.04).

Ao mesmo tempo regiões de urbanização mais recente e de cunho mais aristocrático, como Botafogo e Cosme Velho, pareciam ter como coloração predominante as tonalidades do amarelo (Fig.05).


Contudo, surpreende que a cidade a esta época ainda não apresentasse diversidade cromática mais ampla tal como a proporcionada pela utilização das tintas a óleo e dos novos pigmentos que iam sendo produzidos industrialmente em Europa, e é possível que isto se devesse ao fato de que ainda a essa época este veículo de tinta não fosse muito em conta. César de Rainville, engenheiro de formação feita na Alemanha e que trabalhou em importantes instituições governamentais do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, escreveu um manual de construção impresso ao final do século XIX – o famoso Vinhola brasileiro – segundo ele especialmente adaptado às condições brasileiras, e no qual ele sequer cita o uso da tinta a óleo como solução de tratamento para as fachadas das construções; todas as suas fórmulas destinadas a esse fim envolvem apenas as tintas a base de cal às quais, segundo ele, deve-se “ juntar um pouco de ocre amarello ou roxo, conforme a côr que se deseja”(RAINVILLE. 1880. p. 424). Ou seja, um espectro de cores ainda limitado às terras finas.

Os Primórdios da Cidade Republicana.
A iconografia da cidade parece revelar no início do século XX um tratamento cromático nas fachadas das construções radicalmente distinto do monocromatismo que vinha sendo regra até então (Fig. 06) – o branco colonial e o amarelo neoclássico. Muito provavelmente devido às importações de Europa de materiais de construção, tanto de pigmentos industrializados com maior estabilidade em meios de pH extremo, como também pela própria possibilidade de adoção do óleo de linhaça enquanto veículo.


Por exemplo, em 1903 publicou-se no Rio de Janeiro um manual intitulado Novo tratado usual da pintura de edificios e decoração, de autoria de Paul Fleury. O autor é francês e muito provavelmente escreveu para o público francês. A edição traduzida, contudo, é conjunta, e o propósito nela parece muito claro: o de introduzir na capital brasileira e demais cidades as práticas sofisticadas e já consolidadas em Europa de decoração arquitetônica, em especial as de pinturas decorativas e de estuques, e uma prática, diga-se de passagem, destinada a ser adotada em larga escala. Agora não se trata apenas da residência rural ou citadina da aristocracia agrária que tem por hábito trazer da Europa desde cristais, tapeçarias, até papel de parede. Trata-se é da casa da pequena burguesia republicana que saindo do anonimato da arquitetura monocromática, adere à individualidade permitida pela variada ornamentação de estucados e dos coloridos parietais. A respeito das pinturas a base de cal, Fleury observa: “Este gênero de pintura foi muito mais usado do que é na actualidade. (...) É todavia uma pintura grosseira e desagradável que só dá tons rudimentares e monótonos, porque encerra um princípio caustico que destroe muitas cores e admitte apenas as misturas mais restrictas” (FLEURY. 1903. p. 10). Para a pintura externa das residências, considera como veículo ideal apenas o óleo de linhaça; “..são as sementes chamadas de Riga, vindas da Rússia, que dão o melhor óleo” afirmava ele (idem. p.52).

Aos procedimentos de pintura tradicionais acrescentam-se as técnicas das argamassas pigmentadas – tendo por base o cimento portland importado – e que pretendem criar na fachada do prédio eclético a ilusão de que ele foi todo construído com pedra de cantaria. Para tanto, essas argamassas são aplicadas repetindo conformações da arte da estereotomia das pedras.

Com as grandes remodelações que a cidade sofre com a abertura da Avenida Central e adjacências, durante a administração Pereira Passos, esta diversidade cromática nos tratamentos das superfícies de fachadas é incrementada com a utilização de pedras ornamentais de revestimento, na maior parte importadas da Itália – como os Carraras e Rossos Verona utilizados nos prédios do Teatro Municipal e da Caixa de Amortização. Prática acrescida ao hábito também novo e em maior escala – presente também em construções de menor importância – de se utilizarem as pedras da região, o granito gnaisse que até então, na forma de cantaria, participara apenas de forma tímida nas fachadas compondo elementos estruturais como vergas, cunhais e embasamentos, e que agora é explorado com novas técnicas de corte que permitem a sua aplicação na obra em placas, apenas como revestimento, na maior parte das vezes simulando um rusticado agressivo oriundo da arquitetura do maneirismo italiano onde compunha invariavelmente a alvenaria externa do primeiro piso dos palácios.

A última fase do ecletismo artístico explora possibilidades nas texturas e cromatismo das fachadas prediais que até então não estavam disponíveis por restrições distintas; fosse limitações técnicas, fosse restrições econômicas. Sabe-se que a ânsia de transformar a capital da republica em uma cidade com ares europeus derrubou as barreiras alfandegárias permitindo-se a importação de toda a sorte de material de construção para as obras da Avenida Central, desde sofisticadas maquinarias de elevadores fabricados na América do Norte até tijolos e telhas fabricados em Marseille.

Conclusão.
A documentação iconográfica responsável pelas conclusões em que chegamos, é vasta demais para acompanhar este artigo. Contudo, toda esta documentação foi recentemente impressa no país e acreditamos que os interessados não terão dificuldade em localizá-la com as referências que fornecemos, em qualquer boa biblioteca da área.

Por último cabe realçar que esta pesquisa insere-se no âmbito de uma pesquisa maior sobre ‘Técnicas construtivas históricas’, ainda em curso e que para a sua concretização está recebendo apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, entidade governamental brasileira promotora do desenvolvimento científico e tecnológico, assim como da FACITEC, órgão de fomento à pesquisa da Prefeitura Municipal de Vitória (ES).

Referências bibliográficas.
A cor. Rio de Janeiro : Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: RIOARTE, 1990.
AGUIAR, J & HENRIQUES, F. “O problema da cor na conservação e reabilitação do patrimônio urbano”. 2º ENCORE Encontro sobre Conservação e Reabilitação de Edifícios. Lisboa, LNEC, 27 de junho a 1 de julho de 1994.
BANDEIRA, Bandeira et allii. A missão francesa. Rio de Janeiro : Sextante, 2003.
BARROW, Sir John. A voyage to Cochinchina, in the years 1792 and 1793: (...) London : T. Cadell and W. Davies, 1806.
FERREZ, Gilberto. Iconografia do Rio de Janeiro: 1530-1890. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2000. (02 volumes).
FLEURY, Paul. Novo tratado usual da pintura de edificios e decoração. Rio de Janeiro; Paris: Garnier, 1903. p. 10.
RAINVILLE, Cezar de. O Vinhola brasileiro: novo manual practico do engenheiro, architecto, pedreiro, carpinteiro, marceneiro e serralheiro. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1880.
REBOUÇAS André. Guia para os alumnos da 1ª cadeira do 1° anno de engenharia civil. Rio de Janeiro : Typographia Nacional, 1885.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: EDUSP; FAPESP, 2000.
RIBEIRO, Nelson Pôrto. “Técnicas construtivas tradicionais das alvenarias no Brasil”. In: BRAGA, Márcia (Org.). Conservação e restauro: arquitetura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2003.
Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Petrópolis: Kapa Editorial, 2000.

Referências iconográficas.
Fig. 01. Leandro Joaquim. Largo do Carmo. c.1790.
Fig. 02. Thomas Ender. Rua de S. Antônio. c. 1818.
Fig. 03. Sebastien Sisson. Hospício D. Pedro II na Praia Vermelha. c. 1858.
Fig. 04. Victor Frond. Arcos da Carioca e arredores. c. 1858.
Fig. 05. Bernhard Wiegandt. Rua São Clemente. 1884.
Fig. 06. Gustavo Dall’ara. Casario de Santa Teresa. 1907.

Saturday, May 06, 2006

O CLAUSTRO E A FONTE: um estudo iconológico do claustro do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro.

Autor: Nelson Pôrto Ribeiro.
(publicado originalmente in: Barroco. Belo Horizonte, ano 35, n. 19, p. 199-212, 2004).

1. INTRODUÇÃO: O CLAUSTRO E SEU SIGNIFICADO.
O estudo dos jardins de claustros portugueses na América no século XVIII é dificultado pelo fato de não possuirmos pesquisas específicas sobre o assunto, assim como da suposição de que parte destes claustros possam ter tido seus canteiros, pisos, fontes, alterados ao longo dos anos, fosse por questões decorativas fosse por questões práticas. Embora em termos gerais possamos afirmar que, em relação ao espaço religioso, a lei da inércia tende a predominar em detrimento de um genérico anseio de mudanças nem por isso devemos deixar de admitir que seria altamente desejável que um estudo arqueológico e histórico-iconográfico dirimisse dúvidas e possibilitasse afirmações mais conclusivas.

Quanto ao significado e a importância deste espaço na vida conventual, não é suficiente afirmar, como o faz Germain Bazin, que “a disposição das construções monásticas sempre são inspiradas no princípio medieval do claustro que concentra os locais de vida em comum”(BAZIN. 1983. p.119), muito menos como o faz Mott, de que "os claustros eram espaços de recolhimento e meditação, mas também de sociabilidade.."(MOTT. 1997. p.192), pois se o claustro de um convento de fato era um lugar onde tudo isso se passava, ainda assim estas afirmações não fazem jus àquele que devemos considerar como o centro simbólico e espacial de toda a vida monástica.

O claustro está intimamente ligado a uma concepção de vida contemplativa que, se não era exclusiva da vida conventual, ao menos se pode afirmar que encontra sua origem nela. O neoplatonismo florentino, na antítese que fazia de vida ativa versus vida contemplativa, identificava esta última com a religio (PANOFSKY. 1984. p. 274), e não se deve estranhar que as ordens monásticas mais afeitas à vida enclausurada e contemplativa fossem justamente as mais próximas do mundo das idéias neoplatônicas, tal como os franciscanos. O fato de a cultura ocidental ter tido a sua continuidade - desde os tempos latinos - assegurada pela vida conventual da Idade Média, estreitou ainda mais fortemente os vínculos da religião com a contemplação e o saber. Francisco Stastny, em recente trabalho de iconologia, demonstrou como a universidade, o claustro, o hortus conclusus e a árvore da sabedoria estão intimamente ligados praticamente até o século XVIII nas instituições de ensino superior na América hispana (STASTNY. 1983).

O claustro conventual constituía o local onde os monges se iniciavam na vida contemplativa. É natural, portanto, que fosse o local escolhido para o desenvolvimento dos programas iconográficos artísticos mais complexos. Quando os franciscanos de Salvador, na Bahia, incorporaram em diversos locais de seu convento - entre eles o refeitório, enfermaria, sala de visitas - revestimentos em azulejos com painéis artísticos de fundo moral e religioso, a série mais importante, tanto em termos artísticos quanto em termos simbólicos, foi a escolhida para ser colocada no claustro. Tratava-se de uma série de trinta e dois painéis baseada no ‘Teatro Moral da Vida Humana’ de Vaenius, e que, segundo Santiago Sebastian, divulgava as concepções de um dos livros de emblemas mais difundido na Espanha e na América hispana (SEBASTIAN. 1997. p. 316).

Quase que usualmente esses claustros apareciam situados numa posição central em relação ao conjunto dos edifícios conventuais: pátios invariavelmente quadrangulares com uma fonte no meio. O claustro do Convento de Santa Teresa, em Salvador (Fig.01; abaixo), apresenta ainda jardineiras divididas em quatro e subdivididas em oito, fazendo o desenho de um círculo inscrito num quadrado, com uma fonte central de pedra. Também o claustro do convento do Carmo, na mesma cidade, apresenta um jardim quadrado com um círculo inscrito, dividido em quatro, e com uma fonte ao centro. Os claustros franciscanos - Olinda, Recife, Salvador - por sua vez não apresentam jardineiras, mas estão dispostos com uma forte marcação na pavimentação em diagonal, dividindo-os em quatro partes; o de Salvador possui ainda uma fonte no centro.


Pode-se constatar como elementos que persistem na organização espacial destes claustros conventuais a divisão do quadrilátero do pátio em quatro - seja por marcação na pavimentação, seja por arrumação das jardineiras - muitas vezes inscrito ou contendo um círculo, quase invariavelmente arrematado por uma fonte circular central. Trata-se sem dúvida, de representações da fons vitae colocada no centro do mundo, cercada pelas quatro partes do mundo material e sobrepostas ao grande círculo do mundo supralunar. Aqui, o claustro conventual aparece também, como local privilegiado onde o contato entre os dois níveis - o terrestre e o celeste - é possível. Local, portanto, de contemplação e de comunicação com o divino. São representações razoavelmente convencionais sobre as quais não é necessário que nos detenhamos, é conhecido que o claustro conventual representava um hortus conclusus todo especial; não apenas o Paraíso Terreal, o centro espiritual da Terra, como também o jardim da Virgem, um jardim onde ela aceitava conviver apenas com os mais santificados: iconograficamente, a presença deste hortus conclusus na arte portuguesa pode ser observada em uma pintura de caráter ainda medieval, embora do século XVI, como a ‘Virgem com o menino e anjos num jardim’ de Gregório Lopes, pintada para a charola do Convento do Cristo de Tomar, representando um jardim fechado, onde a Virgem mantém uma sacra conversação com os anjos, enquanto o divino menino brinca aos seus pés; aos fundos, pode-se ver uma fonte com elemento vertical no centro, donde brota água na direção dos quatro pontos cardeais. Gregório Lopes era afeito à prática neoplatônica (cf. SERRÃO. 1999. p. 48). Estas representações foram comuns na iconografia portuguesa e, sem dúvida, preenchiam ainda o imaginário dos pintores e artistas lusos que vieram para o Novo Mundo.

Talvez não seja demais reafirmar como o claustro, no clima tropical e subtropical da América funcionou como local privilegiado de aclimabilidade, possibilitando não apenas trazer luz e aeração para o interior da construção conventual, mas algumas vezes constituindo aquilo que hoje denominamos por um microclima, através de uma verdejante e exuberante vegetação que possibilitava um frescor oásico no meio do calor generalizado. Estou pensando em especial nos claustros conventuais da América hispana, como os de Cuba. Por outro lado, pelo que conhecemos de antigas fotografias do Convento da Ajuda quando este já estava abandonado e prestes a ser demolido (Fig.02), pelas dimensões exibidas, pela fonte generosa de água no seu centro e pelo resto de vegetação de grande porte que ainda restava; pode-se avaliar que ele no seu auge não deveria ter ficado muito distante em exuberante aparência dos claustros hispanos da América Central. Aqui, o pátio conventual soma à tradição cristã do hortus conclusus; a tradição árabe - sempre tão presente na península ibérica - do hortus deliciarum.


2. O CLAUSTRO DO CONVENTO DA AJUDA.
O Convento da Ajuda, para o qual Mestre Valentim teria projetado o Chafariz das Saracuras, era um enorme conjunto de construções situadas numa extremidade da capital da América portuguesa, logo abaixo do morro do Castelo, em frente à praia do Boqueirão e ao lado do Passeio Público. Segundo Pizarro de Araújo a primeira pedra desta construção foi lançada em 1745 e para a introdução das jovens pretendentes à vida religiosa vieram do Convento do Desterro na Bahia quatro religiosas clarissas, com o intuito de que se adotasse na Ajuda, a Regra de Santa Clara (ARAUJO. 1822. p.254); contudo, pelo Breve de sete de janeiro de 1750, foi adotado para este convento o estatuto das concepcionistas franciscanas(UMA DATA, 1950).
A atribuição do Chafariz das Saracuras a Valentim provém de José Marianno Filho (1943). Não existe documentação a respeito, sequer tradição oral. Toda ela baseia-se no fato de que Valentim era, à época (1795), o único artista suficientemente habilitado pela experiência para tanto. Além disso - o que me parece bastante coerente - interpreta-se a forja dos elementos metálicos, representando animais da nossa flora como saracuras e tartarugas, como praticamente por uma assinatura do artista, pois como bem lembra Magalhães Correa em relação à fundição das peças do chafariz do Lagarto; “os únicos fundidores de peças de arte no Rio de Janeiro nessa época”(CORREA. 1935. p.64) eram Valentim e seu ajudante.

A fonte que Valentim levantou, destinava-se ao centro do futuro claustro do Convento – pois a época a construção não estava acabada. Sabemos que havia um projeto completo da construção, de autoria do engenheiro militar brigadeiro José Fernandes de Pinto Alpoim (cf. FAZENDA. 1919. p.276) e pelo qual, com toda certeza, estava muito bem localizado o futuro claustro conventual e a sua fonte. A Fig.03 mostra em plano, o desenvolvimento cronológico das construções conventuais.
A fonte foi lavrada em granito carioca (gneiss) e possui detalhes em bronze - as saracuras, as tartarugas e a cruz latina; assim como em lioz - a placa comemorativa do evento e as armas do Conde de Resende, vice-rei à época (Fig.04).


O partido da composição é rigorosamente simétrico, o chafariz assenta-se em uma base circular e elevada, dividida em oito segmentos radiais e iguais, e onde se alternam intercalados quatro tanques com quatro lances de escada de acesso, cada lance com quatro degraus que levam ao centro da base; onde situa-se uma nova fonte em forma de taça, acima desta, uma agulheta piramidal com cerca de três metros de altura no topo da qual foi colocada uma pequena cruz latina em bronze. As saracuras colocadas na base do obelisco eram em número de quatro, cada uma a um ângulo do quadrilátero piramidal, assim como as tartarugas, cada uma no topo de uma das quatro fontes perimetrais. A água jorrava pela boca das saracuras sobre a face superior côncava da taça, reaparecendo logo depois na boca das tartarugas (MARIANNO. 1943. p.67). A cartela em lioz com o brasão imediatamente acima, arremata o corpo do obelisco (Fig.05).


É suficiente uma aproximação rápida do conjunto para se perceber que se trata de uma obra rica em significados simbólicos: o chafariz de Valentim é uma elaborada elegia ao quadrilátero do mundo material e ao círculo do mundo celeste, intermediados pelo octógono. Portanto, Valentim não fugiu da tradição das fontes circulares de claustro embora tenha construído um conjunto fortemente original que não encontra predecessores a não ser longínquos. Valentim deixa de lado a usual divisão do jardim de claustro em um quadrado contendo um círculo, e incorpora estes elementos e seus significados, no conjunto arquitetônico, uma fonte central com quatro periféricas inscritas em um círculo. O elemento principal deste chafariz é a fonte central de onde brota a agulheta piramidal, as quais, por suas formas evidentes, traçam um inegável paralelo com o tema da taça e da lança.

Ainda que se contra-argumente o fato desta agulheta piramidal assemelhar-se mais a um obelisco do que propriamente a uma lança, dado às suas proporções pouco adelgaçadas, é possível supor-se que o material pétreo à disposição do artista o fizesse mais propenso a executar um artefato final mais robusto, mais próximo de uma espada. Sobre o ponto de vista formal não há dúvida de que existe uma diferença nítida entre um obelisco e uma lança genérica, e o que nós temos no chafariz das Saracuras é sem dúvida um obelisco, e não uma lança. Por outro lado, sobre o ponto de vista simbólico, a proximidade dos obeliscos em geral, com a lança de Longinus, que é uma lança específica, é muito estreita, e em alegoria a proximidade simbólica vale mais do que a formal, em especial nas alegorias arquitetônicas.

A reapropriação do obelisco na cultura ocidental é baseada principalmente na Hypnerotomachia (o sonho de Poliphili – Francesco Colonna - 1499), texto de extrema importância para as alegorias renascentistas e barrocas e onde o obelisco egípcio é interpretado como um símbolo da imortalidade da alma, da ressurreição, expressa através da sua intencionalidade vertical, que aspira aos céus. Ora, a lança de Longinus, na mística cristã, e em especial na mística franciscana - que são os comitentes do chafariz das Saracuras – é vista como instrumento da Ressurreição, como veremos melhor à frente. Na verdade quando Valentim escolhe intencionalmente um obelisco para ficar no lugar da lança, num chafariz que tem como tema principal a taça e a lança, ele nada mais faz do que se manter dentro da tradição alegórica barroca, que é a de continuae translationes, metáforas sucessivas que afastam o significante do seu significado. Enfim, como interpretar o fuste circular e sua modenatura, que antecedem o obelisco das Saracuras, senão como a empunhadura e sua respectiva proteção que antecedem a lâmina da lança? Como interpretar a inusitada composição de um obelisco coroado por uma cruz latina por cima de uma fonte circular em copa, senão como os três elementos centrais que compõem o tema da taça e da lança, que são, respectivamente: a cruz do Cristo, a lança de Longinus e o cálice do Santo Graal?

É bem verdade que uma fonte circular possuindo um ornamento verticalizado no seu centro foi ordenação bastante usual na arquitetura lusa de claustros conventuais. Não é menos verdade também que todas estas fontes de claustro, em última instância, remetem a uma idéia de fons vitae ou fons pietatis que, como veremos melhor à frente, é comum ao chafariz de Valentim, e embora um elemento verticalizante acoplado a uma taça circular seja de fato uma composição usual para fontes centrais de claustros, uma fonte exatamente com os mesmos elementos e características que a de Valentim - a taça, o obelisco e a cruz - no centro de uma composição circular maior com quatro fontes secundárias e perimetrais, me parece absolutamente original.

A taça e a lança foi um tema bastante popularizado, com larga penetração na península Ibérica através das narrativas do ciclo dos mitos arturianos (PEREIRA. 1995. p.278). Este tema reaparece na Legenda Dourada de Voragine, uma das obras que normalizou a história de santos e mártires da igreja de modo a fornecer material temático para os programas iconográficos da época: "Uma das características da iconografia barroca será a volta à hagiografia medieval, recorrendo novamente à 'Legenda Dourada' para enriquecer o repertório de representações", afirma Sebastian (1981. p.309).

Pela Legenda dourada sabemos que Longinus foi o lendário centurião romano que, utilizando uma lança, abriu o costado de Jesus crucificado, segundo ainda a lenda, teria se convertido ali mesmo, aos pés da cruz, passando a ser o primeiro dos conversos a sair pelo mundo, dando o testemunho da divindade do Cristo (VORAGINE. 1993. p.184). Os humanistas da Reforma costumavam escandalizar-se perante o fato da Igreja papista ter aceitado uma lenda totalmente duvidosa, canonizando justamente o verdugo do filho de Deus. Réau, muito oportunamente, observou que este assombro parte de uma incompreensão da doutrina cristã e da importância que para os místicos do simbolismo a lança toma enquanto condição sine qua non para a salvação do homem; um hino medieval em louvor da lança de Longinus afirmava: “Salvação, ferro triunfal entrando no peito do Senhor, tu nos abres as portas do Céu” (RÉAU. 1997. p.253).

Ora, Valentim, na sua fonte, associou o tema da taça e da lança com os temas recorrentes da fons vitae, da fons pietatis e da fons sapientiae, temas medievais por excelência e que no período do Barroco desempenharam um papel secundário na iconografia religiosa, mas que mantiveram a sua expressividade simbólica, perfeitamente adequada ao local em que o artista os utilizou: o claustro central de um convento religioso. Observe-se que, de todos os espaços religiosos, o claustro conventual é o que revelou, através da história, menor mutabilidade, mantendo-se, desde os tempos medievais até o barroco, praticamente o mesmo, ao contrario do espaço da nave da igreja que sofreu varias transformações radicais através deste mesmo período.

Estas fontes, em suma, são todas representações em que o Cristo aparece em sua cruz como que pairando, de forma a que o sangue proveniente de suas cinco chagas jorre diretamente na água da fonte, misturando-se com esta. Através deste simbolismo místico, pretendia-se exaltar a generosidade do Amor divino, doando, com o seu próprio sangue, os dons da vida, da fé e da sabedoria que conduzem à felicidade da vida eterna. Segundo Réau, a devoção das cinco chagas expressou-se alegoricamente na representação da “fonte da Vida, cheia com o sangue de Cristo, que purifica as almas e cura os corpos” (REAU. p.531).

A hipótese de alguns autores, que vêm nas saracuras e nas tartarugas do chafariz, assim como também em outras decorações que Valentim forjou para outros locais um sentido de catalogação da natureza carioca, de proposta iluminista; diante de um exame mais atento não se sustenta. Primeiramente, porque me parece precipitado avançar para o século XVIII uma preocupação que no Rio de Janeiro só aparece no XIX após a chegada dos primeiros naturalistas europeus. Não que o barroco não tivesse um propósito de catalogação da natureza, o mesmo propósito que se encontra em Aristóteles, para quem a estrutura do mundo inteiro assemelhava-se à estrutura do reino animal, ainda hoje classificado à sua maneira, de acordo com genus e species. Sabemos que o barroco português foi especialmente aristotélico neste aspecto e utilizou-se, em particular, da ‘Historia naturalis’ de Plínio. Aliás, manuais renascentistas e barrocos como a famosa ‘Iconologia’ de Ripa eram, segundo Gombrich, impregnados de aristotelismo, pois firmemente conectados com a lógica classificatória de Aristóteles (GOMBRICH. 1972). Mas a existência de uma lógica classificatória barroca – e totalmente distinta da iluminista – não deve ofuscar o fato de que a presença destes animais forjados em bronze tinha, sobretudo, um propósito simbólico.

Saracura e tartaruga (jaboti segundo Marianno Filho), ave e réptil, um animal dos céus e o outro das entranhas da terra, nitidamente um contraste entre o celeste e o ctônico; o paradoxo tanto estimado pela arte barroca. As aves situam-se na fonte central, que é a fonte celeste, o manancial divino; enquanto as tartarugas posicionam-se alimentando as quatro fontes que brotariam no Paraíso Terreal. Uma ilustração pertencente à igreja franciscana do Colégio de São Boaventura em Sevilha nos ajuda a compreensão do programa iconográfico carioca. Trata-se de uma fonte com quatro bicas e duas taças, onde foram postos cinco pássaros a beber. A legenda da gravura diz: “bebi água da sabedoria salvadora”; Sebastian que, considera altamente significativo a conjunção destes três elementos simbólicos, “a fonte, a água e os pássaros”, interpreta estas aves como símbolos intermediadores das relações estabelecidas entre o céu (de onde vem a água salvadora) e a terra (SEBASTIAN. 1985. p.291). As semelhanças da temática daquela gravura com a fonte de Valentim são inegáveis, e pode-se supor que, pela constância com que este tema aparece entre os franciscanos que tenha sido um motivo iconográfico especialmente acalentado por esta ordem. Contudo, o programa da fonte das Saracuras de Valentim é mais sofisticado que o da gravura de Sebastian, pois mais complexo, como veremos abaixo.

Valentim dispôs a fonte com o obelisco e a cruz no centro de um conjunto cercado por quatro outras fontes, compostas estas com uma face interna - uma pequena bacia - e outra externa ao círculo. Trata-se, sem dúvida, como já deixamos vislumbrar, de uma representação dos quatro rios do Paraíso Terreal, conectados com um manancial celeste. Aqui, constata-se na obra de Valentim um propósito místico e alegórico, propósito, entretanto, que não deve encobrir um fato fundamental, de que esta discussão era corrente à época no mundo português, e corrente não apenas nas discussões de caráter teológico, mas também nas científicas. Os contemporâneos de Valentim tinham como hábito discutir conjuntamente ciência e teologia e não se negavam, nos seus tratados científicos, a discorrer sobre a localização nos tempos idos, do Paraíso Terreal. Manuel Álvares, oratoriano, um dos cientistas que os historiadores de hoje identificam com a ilustração portuguesa, defendia em sua obra mais conhecida, junto às teorias de Copérnico e de Newton, que o Paraíso Terreal situara-se nos tempos idos na Armênia maior e que os quatro rios do paraíso tinham lá a sua origem: “todos concordam em que o Tigre, e o Eufrates nascem na Armênia; (...) ambos aqueles rios dimanavam antigamente de uma Fonte comum; (...) A maior dificuldade está em designar na Armênia as origens do Phizon, e Gehon: esta dificuldade porém facilmente se desvanece, dizendo com Calmet, que o Phizon he o rio Phazis, e que o Gehon he o Araxis”. (ALVARES. 1762. p.260).

Na fonte de Valentim, os quatro rios do Paraíso, cada um deles voltado para um dos quatro pontos cardeais, representam junto com as escadas intercaladas de quatro degraus cada, as quatro partes do mundo material, cada uma delas banhada por um rio que emanava de uma fonte comum e celeste - a central. São cinco, portanto, as fontes, e pode-se supor que cada uma corresponda a uma das cinco chagas do Senhor. Em planta baixa vê-se uma fonte central e quatro periféricas, e onde pode se ver, com um pouco de imaginação, um Cristo inscrito tal como no Homo ad circulum dos neoplatônicos florentinos. Do Cristo inscrito de Valentim, brotava uma fonte do meio do corpo e quatro nas extremidades de cada membro. De todas as chagas do Senhor, a produzida por Longinus no costado foi considerada pela Igreja a mais santa de todas (SEBASTIAN. 1981. p.424), por encontrar-se justamente no tronco, e digna, portanto, de ser a mais venerada e assim simbolizada pela fonte central, enquanto as quatro chagas dos membros que mais de um autor considerou como mananciais contínuos de sangue do Cristo, foram simbolizadas no chafariz de Valentim pelas fontes periféricas.

Se a Legenda Dourada de Voragine pode ser identificada como uma provável fonte para o tema da taça e da lança na fonte de Valentim - e não era de todo impossível ter-se acesso a ela no Rio de Janeiro do século XVIII, pois exemplares da obra de Voragine foram encontrados na biblioteca do Colégio dos jesuítas no morro do Castelo (AUTO DE INVENTÁRIO. 1755) - é nela também que se pode encontrar o desenvolvimento da lenda, o que nos explica a proximidade de temas como o Paraíso Terreal, a cruz de Cristo e a fons sapientiae: Ainda segundo a Legenda, a cruz de Cristo teria sido feita de madeira proveniente da árvore da ciência do bem e do mal, a qual, por algum caminho tortuoso, teria chegado até o Gólgota (VORAGINE. 1993. p.203).

É evidente que a idéia central deste relato - baseada na tradicional exegese alegórica das escrituras - apóia-se na intenção de vincular a Queda com a Redenção, o Antigo com o Novo Testamento, assim como na idéia de que Adão seria uma prefiguração do Cristo, pois seriam os dois únicos seres humanos feitos diretamente por Deus, o primeiro vindo à Terra para perder os homens e o segundo, para salvá-los. Segundo Réau, os maiores divulgadores desta lenda, através de programas iconográficos encomendados para suas igrejas e claustros, foram justamente os franciscanos, ordem, segundo ainda este autor, especialmente afeita à temática porque foi a guardiã do Santo Sepulcro e as suas igrejas costumavam estar sob a advocação da Santa Cruz (RÉAU. 1997. p.524). Ora, considerando-se que o chafariz em questão era destinado a uma ordem segunda franciscana, é absolutamente viável supor-se que a temática iconográfica deste claustro tenha sido sugerida a Valentim para ficar de acordo com a tradição. É sabido que o comitente costumava interferir no programa iconográfico da obra que encomendava.

Esta obra de Valentim indica, portanto, a intenção do autor em, no claustro da Ajuda, realizar uma representação do Paraíso Terreal, elaborando um conjunto com uma Fonte da Vida central e quatro fontes periféricas relacionadas aos quatro rios do Paraíso. Intenção que, se por um lado, é a mais corrente possível, já que todo claustro conventual em última instância remete ao Paraíso Terreal, por outro, fica na forma peculiar do artista, ao abordar o problema; a diferenciação deste claustro para os demais. Esta fonte de Valentim apresenta-se, dentre todas as obras do artista como a de caráter místico mais complexo e hermético, sem dúvida, contribuiu para tanto a proximidade que franciscanos tinham com o neoplatonismo medieval. Pela complexidade da arquitetura e de seu simbolismo, o resultado é uma obra notável, no espectro do conjunto formado pelas fontes de claustros conventuais ainda existentes na América.

3. NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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ARAUJO, Mons. Jozé de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das provincias annexas á jurisdição do Vice-rei do Estado do Brasil; (...) Rio de Janeiro, Typografia de Silva Porto, 1822.
AUTO DE INVENTÁRIO e avaliação dos livros achados no Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro e seqüestrados em 1775 in: Revista do IHGB. out-dez de 1973. Vol. 301.
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UMA DATA de festa para os católicos do Rio de Janeiro; bicentenário do Convento de N. Sra. da Ajuda. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 28.05.1950.
VORAGINE, Jacobus. The golden legend: reading on the Saints. Princeton University, 1993. Vol. I.
Créditos iconográficos:
Fig. 02. Augusto Malta. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).
Fig.03. Desenho do autor.
Fig. 04. Augusto Malta. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).
Fig.05. Técnicos do IPHAN. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).

RESTAURAÇÃO E ÉTICA: história e teoria.

autor: Nelson Pôrto Ribeiro.
(publicado originalmente in: Evelyn Furquim Werneck Lima et alii (org.). Cultura, patrimônio e habitação. Rio de Janeiro : 7Letras, 2004. pp. 43-48. ISBN: 85-757-128-0).

Cada vez aparece de forma mais evidenciada que restauração não é uma ciência, ao menos uma ciência exata. O fato de que o ato de restaurar venha quase sempre acompanhado de uma forte cooperação com ciências exatas como a química, não nos deve iludir a respeito do estatuto ontológico próprio da restauração. Enquanto um ramo do conhecimento transdisciplinar - e transdisciplinar no que isto tem de mais amplo, pois a restauração junta não apenas ramos do conhecimento afins como a arqueologia e a história, mas ramos do conhecimento díspares e distintos como a ciência química e a história da arte - é que os problemas que se apresentam para o restaurador, mais do que obstáculos técnicos são problemas conceituais. E esses problemas conceituais, me parecem, estão sempre relacionados de alguma forma aquilo a que eu vou chamar do paradoxo germinal da restauração: paradoxo este fundamentado no fato de que Camilo Boito, o pai do restauro científico no século XIX, ensaiou de compatibilizar duas posturas absolutamente incompatíveis entre si; o respeito ao documento histórico proveniente de Ruskin, com a oportunidade de restaurar, originária da postura de Viollet-le-Duc.

Ora, no embate entre Ruskin e Viollet é tarefa árdua adaptar os ideais de respeito à pátina do tempo procurando-se ao mesmo tempo a perenidade do monumento – que é o objetivo de todo ato restaurador. Ruskin tinha ciência desta impossibilidade e a combatia; querer restaurar um monumento, afirmava ele, significa “a destruição a mais total que uma construção possa sofrer”. Dessa forma, não restaria enquanto destino para o monumento histórico senão a ruína e a desagregação progressiva.

Contudo, parte dos teóricos que se debruçam sobre a história da restauração científica no século XIX parece não se dar conta deste paradoxo e tendem a identificar as duas posições como duas opções distintas de se enfrentar o ato do restaurar; o que a meu ver é equivocado, Ruskin jamais poderia chefiar uma corrente de restauração simplesmente porque ele era contra toda e qualquer restauração. Não é correto acreditar que esta posição radical fosse apenas reação a uma prática fortemente intervencionista como a que estava em moda à época. A posição de Ruskin me parece, era firmemente radicada no respeito ao documento histórico, ainda que ele nunca tenha formulado explicitamente dessa forma e que a sua postura romântica de culto as ruínas encobrisse este escrúpulo historiográfico com asserções vagas do tipo de que os “monumentos arquitetônicos são impregnados de vozes do passado”. Não apenas, mas é suficientemente claro que parte considerável destas “vozes do passado” seriam as informações documentais das quais o monumento é prenhe. E não sem sentido a posição ruskiniana interditava toda e qualquer restauração, pois a restauração em si, qualquer que seja ela, altera a historicidade do documento.

A rigor não é possível conciliar a autenticidade da obra de arte com a sua preservação eterna, por um motivo muito simples, a autenticidade da obra de arte – tanto artística quanto histórica – em última instância está assentada na sua matéria – que é perecível - e não na sua forma – que seria eterna. Não por outro motivo uma cópia por mais perfeita que seja jamais substitui o original, ela não tem aquilo a que Walter Benjamin designou como sendo a aura da obra de arte. Ora, a restauração para recuperar a forma violenta a matéria da obra artística, cada restauração acaba sendo um atrito na aura, e assim esta última vai, paulatinamente, restauração após restauração, esvaindo-se à medida que a historicidade da obra se perde.

Aqui, e isso é importante que seja dito, não se encontra uma defesa implícita da posição de Ruskin, ao contrário, tal como Boito eu prefiro um amigo vivo usando uma perna de pau do que um amigo morto de gangrena. Mas já começam a se apresentar os princípios de uma posição ética em relação ao monumento. Vejam o dilema que já de imediato se apresenta para o restaurador que pensa como eu, ele vive um paradoxo, porque de início ele é contra a restauração, ou pelo menos a favor de se evita-la até que esta seja de fato imprescindível. Se ele for coerente com essa visão ele deveria inclusive defender um procedimento de conservação contínuo do monumento para afastar ao máximo o momento daquilo a que nós chamamos de uma “intervenção de restauro”, contudo, ele vive de restauração, a restauração é o seu ganha pão. Como conciliar ética com o direito que todo ser humano tem de batalhar honestamente pelo seu trabalho? Alguém poderia refutar, argüindo que a função de conservador faz parte da profissão de restaurador, e que assim sendo, quando propugnasse pela conservação em detrimento da restauração o restaurador não estaria retirando trabalho da sua esfera, apenas modificando a natureza desse trabalho. O que não deixa de ser uma verdade parcial. No campo da restauração dos objetos artísticos é fácil entendermos que ninguém daria a função de remover o verniz deteriorado de uma valiosa pintura a óleo que não a um restaurador experiente, contudo, no campo da restauração de monumentos o mesmo não se dá; a caiação de uma fachada, a troca de uma telha rachada, a limpeza de uma calha, a impermeabilização de uma cimalha, não são serviços especializados de restaurador, e, venhamos e convenhamos, bastaria, de uma forma geral, que estes poucos serviços fossem refeitos com uma certa periodicidade em nossos monumentos arquitetônicos para que a necessidade de uma restauração, que em geral aparece de dez em dez anos depois que o monumento é restaurado pela primeira vez, só voltasse a aparecer quando menos, após cinqüenta anos.

Não é fácil convencer nossas autoridades desta simples evidência - elas que são as maiores guardiãs dos nossos monumentos históricos - afinal, e esse é um outro problema ético que surge, obra de conservação não rende dividendos políticos enquanto a obra de restauração sempre possibilita ao administrador público a possibilidade de um evento de re-inauguração. Além disso, a restauração enquanto operação social é extremamente lucrativa em termos do discurso que ela possibilita, pois ela comporta a possibilidade de todo o arsenal do proselitismo extremamente atual do “politicamente correto” - e aqui mais uma vez não me entendam mal, eu não sou contra o “politicamente correto”, eu sou contra que se faça proselitismo disso; que se apele para o auto-sustentável, para a economia dos bens naturais, para a preservação da memória coletiva quando na verdade o único interesse verdadeiro é o número de votos que poderá ser capitalizado no futuro imediato, enquanto o monumento arquitetônico tem o seu futuro longínquo comprometido pelo estado de degradação que propositalmente o deixaram chegar objetivando-se unicamente a uma restauração espetacular - e a restauração quanto mais espetacular for, mais risco oferece ao futuro do monumento. E aqui eu me pergunto, até que ponto nós restauradores não somos parcialmente responsáveis por esta política cultural suicida: em parte por miopia, em parte por comodismo, em parte por oportunismo.

Vejam por exemplo o papel de alguns arquitetos e urbanistas que a princípio deveriam estar atentos aquilo a que Aldo Rossi chamou de necessidade da preservação da identidade cultural de uma cidade, e que, ao contrário, fazem coro com os detratores do patrimônio invocando os direitos do artista à criação. Defendem de forma difusa a necessidade de inovações urbanas e as dialéticas da destruição que sempre fizeram com que as cidades se sucedessem a si mesmas, e que ao longo dos séculos, novos monumentos viessem a substituir os antigos. Não querem ter a sua área de atuação restrita à periferia dos centros históricos ou então serem condenados a construírem pastiches (CHOAY. 2001. p.16). Não é lógico, ao menos para eles, que lhes seja negado o direito que os arquitetos seus predecessores tiveram. Sentem-se não apenas no direito, mas imbuídos do dever de renovar a cidade. Aqui, novamente, aparece aquela auto-suficiência com veios de totalitarismo tão comum a alguns arquitetos, em especial aqueles com pretensão à genialidade. Um bom exemplo deste ‘veio totalitário’ do arquiteto é o acontecido recentemente com o Scala de Milão, onde um projeto do arquiteto Mario Botta simplesmente botou abaixo todo o prédio a partir da boca de cena da platéia. Segundo a Revista Domus (março de 2003), os milaneses perplexos têm-se perguntado como isso teria sido permitido, lastimando o fato de que o ‘seu’ teatro estaria arruinado para sempre.

É oportuno chamar a atenção para o fato de que vivemos um momento histórico distinto e que as próprias noções da história de um povo e de respeito documental, profundamente reformuladas no século XIX – e que em parte explicam Ruskin – já não permitem que tenhamos a mesma posição de nossos antepassados frente ao legado histórico arquitetônico, e que os procedimentos adotados até então não podem ser invocados enquanto direitos adquiridos, pois no campo da evolução social estes direitos não existem - se assim o fosse teríamos que conviver até os dias de hoje com os proprietários de escravos.

Este talvez seja o grande trunfo da idéia de patrimônio cultural, o de permitir pela primeira vez o conceito de uma propriedade social de caráter cultural - não mais um edifício público, um parque ou uma via de circulação coletiva, mas uma propriedade privada que adquire um especial caráter cultural. Observem que talvez seja, dentro da legislação da propriedade privada fundiária a primeira vez na história, que de forma regular – ou seja, em caráter não excepcional tal como quando aconteciam as grandes intervenções urbanísticas – que uma ética coletiva se sobrepõe ao interesse individual. Não por outro motivo é nas sociedades européias com maior enfoque pelo bem estar social que a legislação patrimonial encontra-se mais desenvolvida, enquanto na sociedade da predominância do capital e do individualismo por excelência – a América do norte – a idéia de um patrimônio monumental comum a ser resguardado ainda encontre tanta resistência a ser adotada e seja encarado como um atentado à liberdade do cidadão. Embora, verdade seja dita, a intelectualidade deste país nem toda partilha desta opinião e foi justo um antropólogo americano o primeiro a defender a original idéia de que através da intermediação do turismo de arte, o patrimônio representado pelas edificações constituirá, num futuro próximo, “o elo federativo da sociedade mundial” (CHOAY, 2001, p.17).

A construção de uma teoria do restauro que não atente para o paradoxo insuperável existente no momento do surgimento do restauro ‘científico’ no século XIX corre o risco de adotar procedimentos baseados em um campo teórico desenvolvido, mas que não se apresentam operacionais na prática. Mesmo uma teoria bem estruturada e completa como a de Cesare Brandi – o teórico de restauração mais influente das últimas décadas – não consegue fugir deste paradoxo: embora procurando realçar a transitoriedade, parcialidade e relatividade de qualquer intervenção no monumento histórico por ser sempre marcada pelo clima cultural no qual é realizada, sua teoria não consegue superar esta contradição, e ao mesmo tempo em que busca através do processo de restauração os princípios estéticos - remoção de intervenções erradas e inapropriadas - procura conciliá-los com os princípios históricos - não destruir os traços da passagem do tempo e das intervenções humanas no monumento (BRANDI. 1995). O fato de Brandi não ter sido um arquiteto explica o fato de que, em sua teoria, as exigências estéticas acabassem sempre predominando. Ou, nas palavras de González, uma disparidade que ocorre entre as necessidades do monumento arquitetônico e os objetivos da restauração efetuada, de forma a mostrar uma “incompreensão da própria essência do monumento, reduzida pelo pensador italiano a uma obra de arte” (1996. p.21).

É possível que o erro de toda grande teoria resida justamente na sua intenção de ser ‘grande’. A verdade é que já em pleno século XXI, depois das experiências da pós-modernidade ocorridas, eu me pergunte a respeito da adequação de teorias totalizadoras com suas raízes no iluminismo, e prefira, junto com Bruno Zevi (2002), pelo menos nessa questão, dizer não ao iluminismo e suas teorias porque propugnam concepções universais e absolutistas.

A teoria da restauração contemporânea continua mantendo assim, como uma utopia ontológica, a intenção de conciliar Ruskin com Viollet le Duc. Talvez fosse mister reconhecer que o paradoxo sobre o qual se funda esta teoria não tem solução. Talvez o simples reconhecimento da existência deste paradoxo insuperável e dos nossos limites na tentativa de uma elaboração de uma teoria definitiva, já seja um primeiro passo andado para que deixemos de lado os “parti pris”, as posições de princípio, as verdades absolutas, e que nos dignemos não apenas a ouvir nossos colegas com posições distintas à nossa mas também a ouvir o monumento. Ruskin tinha razão; "o monumento fala", trazendo à tona não somente as vozes do passado, mas também as suas necessidades. O monumento tem uma vocação e respeitá-lo é deixar esta vocação se expressar.

Aqui, voltamos aquela idéia inicial da restauração como o campo por excelência da transdisciplinaridade. O trabalho conjunto entre profissionais de distintas áreas deve ser visto não apenas como exigência das peculiaridades da ciência do restauro, mas também como exercício de tolerância e humildade. Não existem regras fixas, não é possível um principio único. Talvez seja por isso que o primeiro princípio por direito de antiguidade, tido como universal na teoria do restauro, o princípio de reversibilidade, seja tão falado e tão pouco seguido. Qualquer um que trabalhe com a restauração de obras de arte edificadas sabe o quanto é difícil ser fiel a este princípio, sobretudo se é necessário uma intervenção estrutural na edificação. Intervenções estruturais – com exceção dos escoramentos emergenciais – dificilmente são reversíveis.

Em contrapartida, a experiência tem demonstrado que dois outros princípios atingem melhor operacionalidade, e recobrem de forma adequada o respeito devido ao documento histórico; são eles o princípio de mínima intervenção e o princípio de compatibilidade. O primeiro deles opõe-se à idéia de superproteção ainda hoje largamente difusa e que é fruto “..da ilusão de que se trabalha objetivando a eternidade do monumento quando superdimensiona-se os elementos de reforço ou os elementos protetivos” (TORRACA. 1984. p.174). O segundo princípio, o de compatibilidade, baseia-se na procura de um comportamento físico, químico e mecânico, compatível para as estruturas mistas derivadas da aplicação dos modernos produtos sobre os materiais antigos.

Ora, esta reviravolta no enfoque teórico da restauração é decorrência sem dúvida do deslocamento da condução dos problemas, proporcionado pelo trabalho transdisciplinar, de forma a se poder dizer, como o faz o prof. Torraca, que a interação do trabalho de arquitetos, historiadores e cientistas é tão profícua e capaz de soluções tão inovadoras, que doravante o campo da restauração tende a ser dominado por tecnólogos de formação variada.


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