Tuesday, September 18, 2007

TÉCNICA CONSTRUTIVA E CULTURA

(publicado originalmente in: RIBEIRO, Nelson P (org.) I Jornadas do Patrimônio Cultural no Espírito Santo - Anais. Vitória : PPGA-UFES, 2007. ISBN: 978-85-60205-09-7)

1. INTRODUÇÃO.
A importância da técnica construtiva no estudo das sociedades e das culturas do passado assim como da importância que as mesmas vêm adquirindo na questão da restauração e conservação dos monumentos arquitetônicos, sobrevém, sobretudo, do fato de que o patrimônio edificado, ao contrário do propugnado por determinados teóricos, cada vez mais tem se destacado na sua especificidade, diferenciando-se de outros patrimônios materiais como os objetos de arte em geral, e, requisitando procedimentos e metodologia conceitual distinta para a sua manutenção-restauração. Essa especificidade do monumento edificado, paradoxalmente, direciona cada vez mais a problemática da sua conservação e da sua manutenção para o campo da cultura imaterial, ou seja, a cultura dos saberes e dos fazeres de uma época; enfim, o conjunto do conhecimento técnico-construtivo à época da edificação, pois no campo do monumento arquitetônico verifica-se que a autenticidade documental está ligada não apenas a forma, mas também à estrutura, de maneira a que aos tradicionais e já apreciados valores estéticos, arquitetônicos e urbanísticos do monumento, seja também necessário acrescentar os valores tecnológico e estrutural. ‘Valor tecnológico’ este que consistiria justamente no conjunto das soluções técnicas que aparecem nas intenções, na construção e na execução das alterações de uma edificação. ‘Valor tecnológico’ que no campo da História da Cultura expressa e informa sobre as possibilidades e as condições de uma determinada sociedade, mas que, sobretudo, no campo da Conservação e Restauração do Patrimônio oferece ao monumento uma desejável compatibilidade de inserção entre o novo e o antigo. O propósito deste artigo é introdutório a uma pesquisa que vai sendo desenvolvida no âmbito de um Grupo de Trabalho formado por pesquisadores do PPGA-UFES e do PROARQ-UFRJ, ao abrigo do patrocínio do CNPq, intitulada “Arquitetura, técnicas construtivas e restauração: Rio de Janeiro e Espírito Santo”.

2. TÉCNICA CONSTRUTIVA E CIÊNCIA.
A técnica parece acompanhar o homem desde os primórdios da cultura humana, o que não acontece com a ciência propriamente dita. “Nem toda técnica é científica” afirma Ortega y Gasset: “quem fabricou os machados de sílex, no período cheleano, carecia de ciência, e no entanto, criou uma técnica. A China atingiu um alto grau de tecnicismo sem ter a menor suspeita da existência da física. Só a técnica moderna da Europa tem uma origem científica...”[i].
Contudo, sem contrariarmos o autor, é possível afirmarmos que houve na antiguidade latina, ao menos no campo da engenharia e da arquitetura, a formação daquilo que na falta de uma expressão melhor poderíamos chamar de uma proto-ciência da construção. Os romanos deixaram de lado uma prática construtiva que até então era vernácula e se apoiava unicamente na tradição oral e prática, passada de um ‘mestre’ para um ‘aprendiz’, e constituíram aquilo que me parece vem a ser a primeira ciência da construção da humanidade. Ciência essa que se expressou em primeiro através de uma literatura técnica da qual Vitrúvio foi apenas um dos tratados de arquitetura propriamente – o único que sobreviveu - mas literatura técnica que esteve presente também em textos como a História Natural de Plínio – em segundo e, sobretudo, esta ciência romana se expressou através de uma prática construtiva de espantosa regularidade e qualidade obtida praticamente por toda a extensão do império, fruto de uma produção proto-industrial de materiais de construção tal como o tijolo cerâmico e as argamassas hidráulicas obtidas com o uso de pozzolana. “O tijolo gozou de especial predileção entre os romanos devido a que podia ser produzido econômica e rapidamente em condições industriais, alcançando unidades construtivas de tamanho e forma padronizados”[ii], além disso, acrescentaríamos, o tijolo cerâmico sendo produto da transformação pelo homem de um dos materiais mais facilmente encontráveis na superfície do planeta possibilitou a primeira vaga de ‘globalização’ da construção civil, até então fortemente marcada pelo caráter vernáculo imposto sem dúvida pelas condições culturais mas sobretudo pelas limitações regionais dos materiais de construção disponíveis.
A desestruturação da sociedade latina com as invasões bárbaras significou recuos em vários campos do conhecimento humano, em nenhum deles este recuo parece ter sido tão sensível quanto o foi no campo da construção civil. O nível da qualidade técnica da ciência construtiva romana foi tão alto que a Idade Média nunca aceitou de bom grado este fato, chegando mesmo a alcunhar as ruínas das grandes estruturas romanas remanescentes tais como as do aqueduto de Segóvia, como ‘pontes do diabo’[iii]. O padrão de referência a ser alcançado pelas grandes estruturas do Renascimento foi o atingido pela antiguidade latina, em especial nas suas estruturas abobadadas; a cúpula romana do Panteão - que nem o Duomo de Brunelleschi e nem a cúpula de Michelangelo em São Pedro ousaram ultrapassar em diâmetro, fosse por respeito ou por receio - foi o grande paradigma da construção civil da época. De fato as grandes estruturas romanas cupulares e arqueadas só foram ultrapassadas sob o ponto de vista do vão livre e da estrutura do conjunto, pelas estruturas metálicas do século XIX, ou seja, bem entrado já o período daquilo a que Ortega y Gasset caracterizou como sendo a moderna ciência européia.
É de fato possível se afirmar que em um certo sentido as técnicas construtivas utilizadas pela Idade Moderna até o advento da Revolução Industrial do século XVIII, foram basicamente as mesmas já existentes nos períodos anteriores, respeitando-se as variações de caráter regional e alguns resultados peculiares obtidos. Estamos de acordo com Castro Villalba quando este autor realça o fato de que a arte de executar uma parede de cantaria com perfeição já estava dada pelo menos desde o templo de Sakhara, construído cerca de 3.000 A.C[iv]. Contudo, ao longo do tempo houve avanços e recuos, a história da construção arquitetônica é plena de sobressaltos, descontinuidades e diacronias. Desde as primeiras civilizações urbanas que as sociedades humanas foram obrigadas muitas vezes – pelas mais distintas condições – a retrocederem praticamente à estaca zero na arte de construir.
A grande revolução científica da construção começou apenas ao final do século XVIII, ela se deu, sobretudo, na esteira da Revolução Industrial e do desenvolvimento da engenharia de materiais – em especial a química. Em primeiro através do uso de materiais já conhecidos, mas só a partir de então fabricados em um novo patamar de qualidade e quantidade, como é o caso do aço, do vidro e do tijolo cerâmico, e em segundo através da pesquisa e da descoberta de novos materiais, tal como o cimento Portland, que permitiram que o século XIX tivesse estruturas mais eficientes (mais leves e resistentes) e materiais – em especial argamassas e tijolos - de melhor qualidade do que os produzidas pelos romanos da Antiguidade.

3. ARQUITETURA, TÉCNICA CONSTRUTIVA E SOCIEDADE.
Em sua obra mais conhecida Ruskin afirmou “que a Arquitetura é para ser abordada por nós com a maior seriedade. Nós podemos viver sem ela e adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos lembrar. Quão fria é toda a História, quão sem vida toda a imaginária, comparada com aquilo que a nação viva constrói e os mármores incorruptíveis contém”[v].
É evidente que é dentro de um contexto exaltado do romantismo do século XIX no qual gravitava Ruskin que devemos entender a citação acima, com todos os excessos e violências semânticas próprias de uma época. Contudo, refletindo acerca do sentido geral da afirmação do autor, desfazendo-nos das associações poéticas e alegóricas, vamos chegar a conclusão que sob o ponto de vista do conhecimento histórico Ruskin estava coberto de razão. O seu pensamento estava direcionado pela contribuição que a relativamente nova ciência da arqueologia trazia para o campo do conhecimento humano, em especial trabalhando com os macro-artefatos da arquitetura e da cidade, que se constituíam nos maiores informantes documentais da escrita da história, em especial para as sociedades da Antiguidade e da pré-história. Os arqueólogos sabem que a cidade, sua arquitetura e sua arte informam não apenas os aspectos sócio-políticos das sociedades do passado que as construíram, mas também o nível do desenvolvimento tecnológico em que as ditas sociedades se encontravam. São eles que vêm fornecendo já de longa data informações cruciais aos historiadores da arquitetura e da arte antiga. A respeito desta relação, Le Goff observou que o desenvolvimento da arqueologia “..renovou a história. Mal deu os primeiros passos, no século XVIII, ganhou logo para a história o vasto território da pré-história e da proto-história e renovou a história antiga. Intimamente ligada à história da arte e das técnicas, ela é uma peça chave do alargamento da cultura histórica...”[vi].
Existem civilizações do nosso passado que praticamente tudo que sabemos a seu respeito provém unicamente das ruínas de suas construções – vilas ou cidades. Outras, tal como a civilização do Antigo Egito, da qual somos capazes de decifrar os hieróglifos e portanto acessar a documentação escrita, foi somente a partir da magnitude material da sua arquitetura, em especial das Grandes Pirâmides, que os historiadores conseguiram construir modelos hipotéticos que dessem conta de explicar a sociedade que as construiu; chegou-se a conclusão de que as pirâmides não apenas são produto cultural da sociedade egípcia mas também fator primordial na constituição desta mesma sociedade, pois foi através da construção das pirâmides que a casta dos sacerdotes de Mênfis unificou o Alto e o Baixo Egito - até então fragmentados em nomos de características feudais – resultando dessa unificação um estado moderno e centralizado em torno de um Faraó divinizado, em honra do qual as pirâmides eram construídas[vii]. Ou seja, o império que construiu as pirâmides por sua vez também foi construído por esse ato de edificar aqueles, que viriam a ser, paradoxalmente, os primeiros e os maiores monumentos que o homem construiu na superfície da terra ao longo da sua existência.

4. TÉCNICA CONSTRUTIVA E CONHECIMENTO ACADÊMICO.
O desenvolvimento do conhecimento científico no campo da construção, a partir da Idade Moderna, deu-se através da proliferação de uma copiosa literatura técnica desencadeada pelo redescobrimento durante o Renascimento italiano, do Tratado de arquitetura de Vitrúvio, Tratado este que serviu de paradigma para a quase totalidade das publicações européias da área nos dois séculos seguintes. Através da imprensa moderna que ajudará a configurar o saber acadêmico ocidental, a cultura do Renascimento italiano propaga-se nas demais regiões européias na torrente da literatura técnica impressa; na Inglaterra, por exemplo, as idéias do Renascimento se propagam quando da publicação em 1563 do primeiro tratado inglês de arquitetura, de autoria de John Shute[viii].
A palavra ‘técne’ de origem grega, da qual deriva a nossa palavra ‘tecnologia’, tinha um significado bem mais amplo do que esta última denotando não apenas os conhecimentos e as habilidades para se fazer, como também a criatividade necessária para tanto[ix]. No Tratado de Vitrúvio encontramos todos os conhecimentos indispensáveis para a construção arquitetônica, tanto os conhecimentos técnicos propriamente ditos como aqueles conhecimentos necessários na área da estética e da composição. Também é assim com os primeiros tratadistas italianos como no caso de Alberti, contudo, logo em seguida esta literatura técnica na área da construção será diversificada passando-se a encontrar pelo menos três tipos básicos de escritos segundo Sylvia Fischer: o Tratado, obra em geral completa e ambiciosa; o manual técnico destinado a um ofício específico; e o livro de modelo, composto por exemplares de modelos e de plantas de arquitetura a serem copiados e vulgarizados[x]. Deve-se observar, entretanto, que estas são obras destinadas a públicos distintos, responsáveis sem dúvida por uma enorme divulgação e globalização que o conhecimento construtivo alcança a época, mas, não nos parece que possamos identificar já neste momento, plenamente consumado, aquele fenômeno que Habermas situará, a partir do século XVIII, como uma cisão nas esferas do conhecimento, levando cada vez mais à uma fragmentação do conhecimento científico até então unificado, em especializações distintas[xi], cisão essa que foi, sem dúvida, responsável pela divisão na arte do construir, diferenciando paulatinamente a arquitetura da engenharia.
Evidentemente a uma renovação radical - ocorrida a partir das novas tecnologias oriundas da Revolução Industrial – correspondeu uma transformação na área do conhecimento da construção civil, que exigiu no campo Acadêmico e das pesquisas teóricas uma correspondente renovação e especialização que estivesse ‘pari passu’ com as novas possibilidades. É a esta época que surge em França – epicentro do mundo tecnicamente avançado – a ‘École de Ponts et Chaussés’ e a ‘Politechnique’, ambas berço da moderna engenharia e que vão se tornar os paradigmas do ensino técnico da construção no mundo ocidental, durante o século XIX. A partir de então, o conhecimento teórico da arquitetura que vinha unificado desde a Antiguidade cinde-se em dois corpus distintos cabendo à Politécnica (origem do ensino de Engenharia) o saber tecnológico, ao mesmo tempo em que se reservava para a Belas Artes (origem da Escola de Arquitetura) a concepção artística: projetual e conceitual. Também a partir de então, conhecimento vernáculo e conhecimento erudito, que tinham tido vínculos estreitos no passado, vão cada vez mais se distanciar constituindo-se em esferas distintas do mesmo saber.
Essa passagem não se faz sem traumas e rupturas. Já em 1624 o opúsculo publicado na Inglaterra intitulado “The elements of architecture” de Sir Henry Wotten denunciava o fato de que “aqueles que têm o conhecimento técnico não tinham ‘Gramática’ e de que aqueles que estavam publicando livros não tinham conhecimentos”[xii], não conseguindo ainda perceber na justeza de sua observação de que aquilo que designava como ‘Gramática’, a partir de então constituía-se em conhecimento autônomo. Por outro lado, é possível verificar no Tratado do arquiteto francês Durand - talvez o livro teórico mais influente na construção civil do século XIX, embora publicado no final do XVIII – que se trata ainda de um Tratado na acepção renascentista do termo onde lado a lado com as lições de composição, estão capítulos que descrevem as técnicas e as práticas construtivas. É possível que se verifique aqui uma característica francesa, pois segundo Peirce, desde Philibert de L’Orme no século XVI os arquitetos franceses estariam estreitamente vinculados à tecnologia[xiii], de qualquer forma, cada vez mais, o padrão da construção civil proveniente das Belas Artes terá como modelo um tratado de ‘Gramática’ como o de Vignola, enquanto que o padrão da Politécnica optará por um tratado predominantemente técnico como o de Reynaud, aumentando o fosso entre o saber arquitetônico e o saber do engenheiro, criando áreas de saber distintas num conhecimento que no passado tinha sido uno e indivisível.

5. TÉCNICA CONSTRUTIVA E HISTÓRIA.
Ciência relativamente nova, a história da arquitetura desenvolveu-se num meio bastante fecundo que é o do florescimento das ciências humanas no século XIX, em especial a arqueologia e a história, das quais, ao menos a princípio, seria um braço auxiliar. Os Tratados de arquitetura até então muitas vezes enveredavam pelas interpretações históricas: é conhecida a polêmica de Durand, por exemplo, contra a interpretação ingênua e naturalista da arquitetura do passado expressa no Tratado do abade Laugier[xiv], mas obras de história da arquitetura propriamente dita, me parece, vêm à luz apenas no século XIX.
A arquitetura era vista por estas primeiras obras, sobretudo, como construção e técnica. Assim, estes aspectos deveriam estar presentes em toda intenção historiográfica e os historiadores do século XIX cientes de sua responsabilidade desenvolviam teorias onde grassavam as interpretações funcionalistas dos estilos, mesmo distanciando-se da abordagem ‘ingênua’ de Laugier. Viollet-le-Duc, por exemplo, demonstrou através de seus estudos da arquitetura francesa que a passagem do estilo Românico para o Gótico e do arco pleno para o arco ogival, antes de obedecer a uma abstrata ‘vontade de forma’ respondeu a uma necessidade estrutural de atenuar os empuxos na base dos arcos e abóbadas e melhor estabilizar estruturas dinâmicas, já que 150 anos depois da construção, todas as grandes igrejas românicas do ocidente estavam necessitando de reparos estruturais[xv]. O historiador Auguste Choisy, já no final do século, continuaria defendendo o “conceito básico de forma arquitetônica como conseqüência lógica da técnica”, para Choisy, de acordo com Banham, “technique, méthode, procedé e outillage são aspectos da sociedade como um todo”[xvi].
De fato, os estilos artísticos costumavam decorrer da técnica, embora, ressalva necessária, técnicas similares pudessem gerar estilos distintos - pois culturas tão distintas quanto a egípcia e a grega produziram arquiteturas igualmente distintas utilizando-se de princípios construtivos similares, o sistema trilítico, obtido através de estruturas de pedra - e isto porque a arquitetura não depende unicamente da técnica mas também dos fatores socio-políticos que forjam as concepções de homem e de espaço e que variam de uma sociedade a outra.
De qualquer forma é só o século XX que vai desenvolver uma história da arquitetura aonde, paulatinamente, as questões técnicas vão sendo relegadas a um segundo plano e substituídas pelas questões estéticas e conceituais. Em parte isso se deve, como já chamamos a atenção, ao fato da dissociação havida entre o fazer técnico e o fazer artístico que se consubstanciou na separação das Escolas Politécnicas e de Belas Artes respectivamente, e em parte, pela própria essência vanguardista da arquitetura moderna, preocupada, sobretudo, em romper com as formas do ecletismo e não com as suas técnicas.
É curioso observar que nenhuma das grandes histórias da arquitetura moderna incorpora nas suas análises as técnicas construtivas e suas possibilidades - com exceção de capítulos introdutórios genéricos - como é o caso nas populares obras de Benevolo e Frampton[xvii]. Observa-se, contudo, que em algumas obras atuais dedicadas a arquitetura histórica as técnicas construtivas ainda aparecem com alguma relevância, é possível que esta dicotomia se deva a uma concepção equivocada de que a técnica atualmente é entendida como fundamentalmente importante na arquitetura do passado enquanto agenciadora do estilo, e na arquitetura do presente não tanto. Também não devemos nos esquecer que enquanto as técnicas construtivas do presente são operativamente falando, matéria do domínio de quem trabalha diretamente na construção civil – engenheiros, arquitetos e construtores – e, portanto, do âmbito da literatura técnica propriamente dita, as técnicas construtivas históricas estão restritas ao domínio dos pesquisadores: um corpo de conhecedores muito mais limitado que os primeiros e onde o exercício acadêmico predomina sobre a prática efetiva, o que acaba conduzindo estas últimas para a área da história e da pesquisa.

6. TÉCNICA CONSTRUTIVA E RESTAURO.
É possível, contudo, que um ressurgir das técnicas construtivas nos estudos históricos da arquitetura do passado tenha se dado pela via da conservação e restauração dos monumentos arquitetônicos. A Carta de Veneza timidamente já apontava nessa direção que a Carta do Governo Italiano de 1972 retomou e que, atualmente, é a normativa do Conselho de Europa, pois o mesmo quando financia uma obra de restauração “exige a utilização de técnicas históricas”[xviii].
É Benévolo que afirma que “se queremos conservar os artefatos tradicionais, é preciso salvaguardar os misteres tradicionais, que em outros tempos serviram para construir tais artefatos e agora devem servir para mantê-los”[xix]. Estes misteres ao qual o autor se refere são não apenas o ‘fazer’ propriamente dito, mas também o ‘saber’, o conhecimento acadêmico que ficou preservado pela literatura científica e alguma coisa do ‘saber vernacular’ que ficou nos manuais populares, pois se sabe que este conhecimento todo é fundamental para a escolha dos procedimentos adequados a serem utilizados na conservação/restauração destas edificações, não apenas para a compreensão do processo de degradação das fábricas construtivas e de um diagnóstico preciso deste processo, mas, sobretudo para a consolidação das mesmas, pois o procedimento histórico é sempre mais adequado do que o fornecido pelas modernas tecnologias – com raras exceções – oferecendo, de maneira geral, maior compatibilidade entre o que é oriundo do original e o que provém da intervenção.

7. TÉCNICA CONSTRUTIVA E AUTENTICIDADE DO MONUMENTO.
A questão da autenticidade documental também é uma questão complexa a ser examinada, em particular quando se tratam de monumentos arquitetônicos e urbanísticos. A rigor a posição de Boito, a quem repugnava uma interpolação contemporânea em um texto antigo[xx], continua válida, contudo deve-se observar que ao contrário do texto escrito e da obra de arte, a obra de arquitetura tem as suas especificidades que a diferenciam.
Essa especificidade é assentada, sobretudo, no seu caráter estrutural embora o monumento arquitetônico tenha ainda outras características que lhe são próprias, tal como a ambiência – embora essa última possa ser encontrada também em algumas obras de arte. Sendo assim, não se pode falar em autenticidade do monumento sem se falar em autenticidade estrutural, autenticidade ambiental etc... O Comitê do Patrimônio Mundial chega a identificar, em relação ao monumento, autenticidades do design; dos materiais; da manufatura e da instalação[xxi].
É justo da autenticidade estrutural do monumento - que envolve materiais e manufatura - que cabe uma reflexão aqui. É certo que o caráter estrutural está também presente em obras de arte em geral, pois não é possível uma restauração de um objeto artístico, seja ele uma tela, um afresco ou uma escultura, na qual os aspectos estruturais, se comprometidos, não sejam também sanados. Contudo, o que verificamos de distinto é que a estrutura e a sua recomposição, no objeto de arte, tem um sentido distinto da estrutura do monumento edificado. Um bom exemplo para ilustração é o procedimento de ‘reentelamento’ de obras de arte pintadas à óleo em tela. É um processo antigo, os italianos já o executavam com sucesso desde 1729[xxii] e basicamente consiste na separação da camada pictórica de seu suporte - a tela degradada - a qual é substituída por uma tela nova. Ora, tentarmos um processo similar a este na restauração de um monumento edificado é absolutamente impensável (tirar a casca do monumento e colocá-lo numa estrutura nova), e isso por um motivo muito simples; enquanto a ‘essência’ da pintura está situada na sua camada pictórica – de tal forma que podemos mesmo retirar a sua estrutura antiga e jogá-la fora – a ‘essência’ do monumento edificado está na sua estrutura, e o procedimento usual de conservação aqui é justamente o inverso da pintura, pois a prática na arquitetura é a de se continuamente retirar e renovar a camada pictórica final dos monumentos – algumas vezes, até mesmo o seu substrato deteriorado como emboços e rebocos. Monumentos foram feitos para terem a sua camada pictórica renovada, os antigos assim o faziam periodicamente com o intuito de conservá-los e devemos proceder da mesma forma, tendo o cuidado, evidentemente de preservar o espectro de texturas e colorações das tintas e das argamassas antigas para não termos como resultado final do processo de conservação-restauração um monumento com aparência historicamente anacrônica.
Pintores meticulosos que queiram utilizar a técnica do óleo nos dias de hoje usarão os mesmos procedimentos já descritos no tratado de Cenino Ceninni[xxiii] do século XVI e que são apenas re-atualizados pelos tratados de hoje, como o Manual de Pintura de Ralph Mayer[xxiv]. Ao contrário, a história da arquitetura é uma história da evolução incessante da técnica construtiva e de como estas inovações técnicas permitiram a expressividade arquitetônica propriamente dita - a grande crítica feita ao ecletismo, pelos historiadores atuais, é de que se trata do primeiro estilo a se afastar desta lógica estrutural da arquitetura, pois vivendo na época da revolução do concreto armado eles simplesmente retornaram aos padrões expressivos do passado. Mesmo a arquitetura contemporânea – tal como o desconstrutivismo de Frank Gehry ou um expressionismo de Santiago Calatrava – só é possível a partir do desenvolvimento das estruturas metálicas e em especial de suas soldas, no século XX. Assim, enquanto técnica na pintura, apresenta-se como um meio para se alcançar a expressividade, na arquitetura a técnica é a própria expressividade.
Torna-se então evidente de porque a estrutura cumpre um papel tão essencial no monumento arquitetônico e porque a autenticidade do mesmo está intrinsecamente ligada a ela, de maneira a que aos tradicionais e já apreciados valores estéticos, arquitetônicos e urbanísticos do monumento seja também acrescentado o valor tecnológico. Valor tecnológico este que consistiria justamente no conjunto das soluções técnicas espelhadas nas intenções, na construção e na execução das alterações de um edifício[xxv].
Se a estrutura e sua técnica, enquanto ‘essência’ do monumento arquitetônico, dão autenticidade ao mesmo, contanto que reproduzamos as duas meticulosamente estaremos autorizados a reconstruir o que for necessário? A resposta a esta indagação é complexa tal como em geral todos os questionamentos na área da Restauração, ainda tendo em conta que cada caso é um caso poderíamos ao menos esboçar alguns princípios gerais para finalizar:
Em primeiro é necessário a autoridade da ruína, é ela que indica como uma reconstrução deve ser feita, em especial porque as edificações antigas não costumavam ter projetos ou quando o tinham muitas vezes estes não eram seguidos com rigor. Fazer uma reconstrução com base em antiga iconografia, dependendo da amplitude desta reconstrução é uma temeridade. (observe-se que ruínas não significam apenas as linhas de fundação, mas sim alvenarias das paredes, estruturas de telhado etc...). Quanto mais completo está o monumento maior é a possibilidade da reconstrução.
Em segundo devemos ter em conta que a anastilose tem um papel importante nesta atribuição de autenticidade. Reconstruir com o material original é bastante distinto de reconstruir com materiais novos ainda que se trate dos mesmos tipos de material.
Em terceiro devemos observar que quanto mais nos afastamos na história, mais constatamos que a técnica construtiva tem um caráter regional e individual, portanto mais difícil de ser reproduzida com autenticidade. Por outro lado quanto mais nos aproximamos do tempo atual, mais observamos o inverso, ou seja, de que a técnica construtiva torna-se internacional e impessoal e portanto mais propensa à reconstrução, até o ponto do presente momento, onde toda reconstrução bem feita de uma edificação atual não se distingue em valores materiais, estéticos ou históricos, do modelo original.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
[i] José Ortega y Gasset. A rebelião das massas. São Paulo : Martins Fontes, 2002. p.141.
[ii] Robert Mark. Tecnologia arquitectónica hasta la revolución científica: arte y estructura de las grandes construcciones. Madrid : Akal, 2002. p.103.
[iii] Leonardo Benevolo. História da cidade. São Paulo : Perspectiva, 1983. p.188.
[iv] António Castro Villalba. Historia de la construcción arquitectónica. Barcelona : Ediciones UPC, 1996.
[v] John Ruskin. The seven lamps of architecture. New York : Dover, 1989. p.178 (tradução do autor).
[vi] Jacques Le Goff. História e memória. 5ª edição. Campinas : Unicamp, 2003.p.108.
[vii] Mario Salvadori. Por que os edifícios ficam de pé. São Paulo : Martins Fontes, 2006. p.28.
[viii] Sylvia Fischer. “Introdução a uma introdução” in: Ruy Gama (org.). Ciência e técnica: antologia de textos históricos. São Paulo : T.A. Queiroz, 1992. p.90.
[ix] Julio R. Katinsky. “Preliminares a um estudo futuro de Vitrúvio” in: Vitruvio. Da arquitetura. 2ª edição. São Paulo ; Annablume, 2002. p.17.
[x] Fischer. op.cit. p.90.
[xi] Jürgen Habermas. “Modernidade versus pós-modernidade” in: Arte em revista. São Paulo : CEAC. Ano 5. N° 7. Agosto de 1973. p.88.
[xii] Apud: Charles. E. Peterson. “Introdução ao texto: As regras de trabalho da Companhia de Carpinteiros da Cidade e Condado de Filadélfia (1786)” in: Ruy Gama (org.). Ciência e técnica: antologia de textos históricos. São Paulo : T.A. Queiroz, 1992. p.97.
[xiii] Idem. p.98.
[xiv] A este respeito ver Joseph Rykwert (A casa de Adão no paraíso. São Paulo : Perspectiva, 2003), em especial o capítulo 03.
[xv] Viollet-le-Duc.
[xvi] Rayner Banham. Teoria e projeto na primeira era da máquina. 2ª edição. São Paulo : Perspectiva, 1979. p.45.
[xvii] Leonardo Benevolo. História da arquitetura moderna. 3ª edição. São Paulo : Perspectiva, 2001. Kenneth Frampton. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo : Martins Fontes, 1997.
[xviii] Ignácio Gárate Rojas. Artes de la cal. 2° edição ampliada. Madrid : Munilla-Leria, 2002. p.30.
[xix] Leonardo Benevolo. A cidade e o arquiteto. 2ª edição. São Paulo : Perspectiva, 2001. p.137.
[xx] Camillo Boito. Os restauradores. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002.
[xxi] cf. B.M. Feilden et alii. Management guidelines for World Cultural Heritage Sites. ICCROM, Roma, 1993.
[xxii] Segundo Boito, o primeiro a executá-lo foi o italiano Domenico Michelini logo seguido pelo francês Pierre Picault, que teria reentelado o São Miguel de Rafael que se encontra no Louvre (Boito. op.cit. p.48).
[xxiii] Cennino d’Andrea Cennini. The craftsman´s handbook : ‘Il libro dell’arte’. New York : Dover, 1960. (manuscrito do século XVI).
[xxiv] Ralph Mayer. Manual do artista de técnicas e materiais. São Paulo : Martins Fontes, 1999.
[xxv] Cf. Mateus.

ICONOLOGIA DO ESPAÇO ARQUITETÔNICO NA CULTURA LUSO-AMERICANA

(Publicado originalmente in: RIBEIRO, Marília Andrés & RIBEIRO, Maria Izabel B. (org.) Anais do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Belo Horizonte : C/Arte, 2007. pp: 498-507. ISBN: 978-85-7654-053-3)

1. INTRODUÇÃO.
É mister reconhecer que uma obra arquitetônica jamais tem um caráter verdadeiramente icônico e nem poderia ser de outra forma, pois a arquitetura não é uma arte imitativa. Mas, desde que o homem passou a dominar com uma certa técnica a construção de suas moradas e a organização do seu espaço urbano, sempre - e isso pode ser encontrado nas mais diversas sociedades ainda que com as mais variadas intensidades - se colocou a tarefa em organizá-los de forma a que refletissem as suas concepções cosmogônicas, a sua mundivisão, tentando criar vínculos de ligação com os seus deuses. A casa, o templo, a cidade podem e devem também ser estudados como expressões dessas concepções[1]. “A planta (ou icnografia) como idéia primária da criação do espaço, foi em princípio patrimônio de Deus, quem ditou as medidas a seus representantes na Terra (reis e sacerdotes)[2].

2. RENASCIMENTO, BARROCO E SIMBOLISMO.
Como bem observou Renan, o homem sempre que em possessão de uma idéia clara divertiu-se em revesti-la de símbolos[3]. Ora, a arquitetura continuamente ocupou um lugar especial no pavilhão das artes, particularmente a partir do renascimento italiano quando, pode-se dizer, converte-se na arte par excellence. Platão, o objeto central dos estudos humanistas florentinos teceu comentários a respeito da arquitetura com a música no Filebo e desta com a filosofia, no Política, passagens estas que foram exaustivamente comentadas pelos especialistas da época[4]. É evidente que, com tal perspectiva em relação à primazia do objeto arquitetônico no campo das artes, a prática até então comum de fazer intervir de maneira contínua os textos - as referências literárias humanistas - e as obras artísticas, fosse incrementada também na prática arquitetônica, corroborando a imagem usual do Renascimento como uma sociedade marcada profundamente por uma comunicação do tipo simbólica. É assim que enfrentar a iconologia da obra arquitetônica aparece como uma prática indispensável para o estudo das culturas influenciadas por este período artístico tão fecundo e que deixou tantas marcas na cultura ocidental moderna.

Ainda que se leve em consideração o fato de que, a partir de Trento, a filosofia oficial da igreja foi o tomismo aristotélico, percebe-se que dificilmente as diretrizes implantadas por este Concílio conseguiram sufocar o vigor de um novo renascimento do símbolo e do pensamento indireto presentes com uma maior ênfase desde o Renascimento. O barroco é neoplatônico, tanto através da sua prática alegórico-artística, quanto através da sua prática religiosa, diga-se de passagem, ambas estreitamente relacionadas. Apesar do aparente paradoxo, Trento foi um incentivo para a prática alegórica barroca, pois a partir do momento em que o Concílio fez ouvir as suas advertências, "a alegoria, mais do que nunca, tornou-se um meio, uma sorte de expediente para se escapar à censura: ela inocenta as imagens pagãs tal como os contos licenciosos"[5]. Está no espírito do Barroco dar continuidade à tradição do pensamento indireto humanista, através do uso da alegoria: "os pressupostos neoplatônicos são a grande justificação da cultura simbólica do barroco, época por excelência da imagem"[6].

3. BARROCO, ALEGORIA E ARQUITETURA DO EFÊMERO.
A maneira como a concepção cosmogônica e o espaço artístico se relacionavam nem sempre era muito clara, pois intermediada por uma prática alegórica complexa, segundo o Pe. Bluteau chamada de "Continuæ translationes, porque na realidade Allegoria he huma continuada compofiçaõ de metaphoras"[7]. Estas relações poderiam parecer muitas vezes obscuras, distantes, ou sutis e refinadas; fosse na disposição da planta de uma igreja, no parterre de um jardim palaciano ou na organização plástico-espacial de uma pintura.

Foi talvez, na arquitetura do efêmero; em especial naquela da Eça funerária, que a alegoria barroca mostrou-se em toda sua plenitude. Os historiadores da arte que se debruçam sobre o século XVIII na América portuguesa não só realçam a permanência da cultura barroca do XVII, como enfatizam o caráter mórbido desta. Afonso Ávila fala do homem deste período como um homem residuariamente seiscentista, onde permanecem as características de um “gosto quase mórbido pelos motivos e representações de cunho dramático, noturno, lutuoso[8].

Observa-se uma obssessão na cultura barroca pela morte, a insistência nas idéias de transitoriedade e da vanitas culminaram no culto da morte e das almas dos mortos. Quase tudo nesta sociedade é centrado nestas questões. Este é, sem dúvida, o acontecimento ao qual se consagra o maior número, e as mais importantes cerimônias sociais. A comprovar essa obssessão barroca está o número impressionante de panegíricos fúnebres impressos no período, que excede largamente o das demais comemorações festivas. Uma leitura dos rituais que se deram quando, por exemplo, do nascimento do filho do Infante de Espanha no Rio de Janeiro e quando da morte deste mesmo Infante um ano após, em 1812, é revelador do peso dado ao segundo acontecimento em detrimento do primeiro; enquanto o nascimento do filho foi comemorado com três dias de luminárias e um grande ato religioso na Capela Real, à morte do pai sucedeu-se, por cerca de trinta dias, Exéquias nas inúmeras Igrejas de ordens, confrarias e irmandades da cidade, cada uma destas cerimônias querendo exceder à outra na construção de um mais suntuoso Mausoleo[9].

Pode-se observar também, que enquanto a Entrada Real é a comemoração que expressa mais adequadamente a cultura do Renascimento quiçá do Maneirismo, a comemoração lutuosa - Exéquia - é a que tipifica melhor o espírito do Barroco. Evidentemente, houve Exéquias suntuosas no Renascimento, assim como ainda no início do século XIX comemorava-se em grande gala a Entrada Real da arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, no Rio de Janeiro. Entretanto, se observarmos a concentração que cada evento guarda em seu respectivo século, através da vasta e completa coleção do abade Machado existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, constatamos que o auge dessa produção desenfreada de panegíricos e epitalâmios fúnebres coincide com o auge do barroco português, o final do reinado de D. João V.

Certamente não se morre nesta época mais do que nos períodos anteriores, porém se realça mais este fato enquanto ritual, seja o rito devido às mortes recentes; "dificilmente um dia passou-se, em que não víssemos alguma procissão de funeral, acompanhada por padres carregando tochas e cantando" observou John Barrow no Rio de Janeiro de 1792[10] seja através do culto das almas do purgatório; "a execução de um réquiem solene para alguma alma partida"[11] de forma que o satirista francês, ao afirmar que os portugueses “para honrar os mortos, fazem morrer os vivos[12] não estava muito longe da verdade.

Uma sociedade de tal forma voltada para o culto da morte não poderia ter como melhor expressão da sua cultura senão a arte funerária, a qual já se apresentava como uma arte efêmera, pois as Eças e Mausoléus construídos para as Exéquias das grandes personalidades eram obras que, muito adequadamente, comportavam todo o requinte e o fausto da arte barroca aliados à atração pelo transitório, e assim como Benjamin notou que o cadáver cumpria o papel de alegoria da physis[13] pode-se dizer que o mausoléu era a alegoria da vida, breve como ela, o que levava a que, logo após o término do culto, fosse imediatamente demolido apesar do esmero com que havia sido construído.

Um exame sobre as descrições destes mausoléus contidas nos inúmeros panegíricos que o século publicou - era comum a publicação destes panegíricos em Portugal desde o século XVI, mas a medida em que se entra pelo XVIII a dentro eles se tornam mais volumosos e verborrágicos - e um exame das gravuras que, ocasionalmente, acompanham estas descrições nos permitem dizer que, se o Barroco é de fato atração pelo horror, pelo mórbido e lutuoso, a cultura do Barroco acentua-se no XVIII português em relação ao XVII, devido ao aumento que se constata dessa produção tumulária inspirada no grotesco e no horrível.

Observa-se uma radical transformação no caráter destas obras de arte, desde as Exéquias do Principe Theodósio, filho e herdeiro de D. João IV, celebradas pelo embaixador português em Londres em uma cerimônia onde o mausoléu construído era de uma serena e austera aparência classicizante[14];




Até o mausoléu construído um século após na Igreja da Sé Patriarcal, quando das Exéquias de D. João V, este último, de gosto absolutamente barroco e lúbrico, onde os reposteiros de veludo negro e franja dourada contrastavam com os assustadores esqueletos prateados, ornando as colunas marmóreas que sustentavam o dossel[15]. Apenas neste último mausoléu aparece completo o esqueleto em todo o seu esplendor - um a cada lado da urna - esplendor fúnebre, persuasiva imagem retórica da morte; o cadáver como "o supremo adereço cênico, emblemático, do barroco.."[16] .


Nas Exéquias realizadas em Salvador em 1745 para o Abade Botelho, irmão do Primaz do Brasil, o panegirista resumiria bem este sentimento da atração barroca pelo horrível; “Na primorofa Eça, que mandaraõ levantar no meyo de fua Igreja, em que ardia huma infinita multidaõ de luzes, pudera fufpeitarfe, que quizeraõ lifongear os lutos, horrorizando o bello, e formofeando o horrorofo . Sendo aquella eftancia infalivel argumento da mortalidade, fatal defengano da humana natureza”[17]. Aliado ao horror da temporalidade humana aparecem os temas barrocos do desengano e da vanitas. O discurso retórico e teatral do Barroco tem a intenção de impressionar não só pelo belo mas também pelo horrível; observa-se que o período tem uma leitura própria de Aristóteles e da sua teoria da catarse e acredita nesta, servindo aos seus objetivos ritualísticos de inspirar sempre o respeito e a admiração, através da atemorização. Referindo-se ao mausoléu erigido no Rio de Janeiro por ocasião do falecimento de D.Maria I e do culto realizado na Capela Real em intenção de sua alma, o Padre Santos, em suas memórias, relatou que o altar-mor estava "..profusamente iluminado, o que, juncto com o funebre da armação, excitava em todos hum sancto pavor..."[18].

Também o uso da emblemática se acentua no século XVIII; nas Exéquias de Theodosio o número de alegorias e emblemas que decoraram seu mausoléu não ultrapassaram uma dezena, enquanto nas honras fúnebres da Infanta D. Francisca - no século seguinte - apareciam pelo menos, quarenta e oito emblemas estampados acompanhados de motes[19], assim como também nas de D. João V, realizadas na Basílica Patriarcal, este número era de quase trinta; "no Barroco maduro, a distância que separa suas produções dos primórdios da emblemática, um século antes, torna-se mais perceptível, as afinidades com o símbolo se tornam mais evanescentes, e a ostentação hierática se torna mais imperiosa"[20].

A tendência instaurada a partir do romantismo foi sempre o de desvalorizar a alegoria frente ao símbolo, dela teria dito Goëthe que se tratava de um símbolo resfriado[21], mas o homem barroco não fazia distinção a respeito e embora sua alegoria contivesse, de fato, um alto teor de convencionalismo e de precisão discursiva, garantida pela profusão das múltiplas e sucessivas edições de manuais e dicionários de iconologia publicados a partir do século XVI, ainda assim estava longe de uma prática rígida e castradora na qual foi reduzida a alegoria no iluminismo. Ao contrário do que se constituiu a alegoria deste último período, a alegoria barroca não era “..frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem, e como a escrita”[22].

O Barroco configurou-se como o período dos manuais iconológicos. É bem verdade que os mais famosos, como Cartari (1556), ou a Iconologia de Ripa (1593) são do período anterior, mas é no século XVII e no XVIII que chegam a conhecer a ampla divulgação que tiveram, atestada pelas inúmeras edições e acréscimos que sofreram. Trabalharam, entretanto, de forma significativa para a formação de uma prática alegórica no mundo português, a literatura da época que majoritariamente se constituiu de panegíricos, epitalâmios, elogios. Muitos desses opúsculos, sob o pretexto de fazer uma descrição de algum funeral, davam uma pequena aula de iconologia. Muitas vezes, o opúsculo publicado sequer utilizava-se de pretexto, dizendo diretamente no título a que vinha, tal como a Idea Poetica...[23] de autoria de Francisco Leitão Ferreira e publicada em 1709 que tinha como propósito eternizar a obra de arquitetura efêmera, na medida em que a descrevia detalhadamente e explicava o seu conteudo iconográfico: tratava-se de um Arco do Triunfo e suas alegorias, que a nação italiana em Lisboa construíra quando da Entrada nesta cidade de D. Marianna d'Austria. Esta brochura é preciosa, pois se constitui num verdadeiro tratado iconológico da arte portuguesa do dezoito. Ferreira, enquanto autor do programa iconográfico do referido Arco, apresenta-nos mais do que um histórico da origem das Entradas; ali estão presentes todas as concepções que a época agasalhava a respeito desses cerimoniais, assim como as alegorias adequadas para diversas situações (teoria do decorum), suas interpretações e suas fontes clássicas. Por ele ficamos sabendo que o Barroco português trabalhava ainda com os primeiros manuais do Renascimento italiano, que, junto com Camões, a referência de cunho nacional, citava-se profusamente - mais inclusive do que os clássicos gregos e latinos – eram eles Vicenzo Cartari, Lilio Gyraldi e Natale Conti[24], todos publicados entre 1548 e 1566 e que, segundo Jean Seznec, conheceram grande repercussão e sucesso por toda a Europa do seu tempo[25].

Para que se possa estudar adequadamente os significados alegóricos na arte luso-brasileira não basta a consulta aos manuais clássicos que encontramos com maior facilidade. A nossa avaliação tardia, que trabalha com valores diversos aos da época, tende a valorizar um Alciati e um Ripa, por exemplo, que nos dias de hoje encontram edições populares facsimiladas, em detrimento de outras, caídas no esquecimento e que, apesar de serem produzidas por autores obscuros, muitas vezes meros compiladores de trabalhos anteriores, tiveram grande repercussão e influenciaram gerações do Renascimento ao Barroco. Além disso, é indispensável o acesso à familiaridade e à prática de como estas alegorias eram reapropriadas pela cultura portuguesa, e só é possível ter acesso a esta prática, através do convívio com obras como estes pequenos livros descritivos de Exéquias e de Entradas, que o século editou às centenas.

Não é certo que a alegoria fosse para o homem barroco um estéril exercício de retórica discursiva que ele simplesmente tomava de empréstimo aos manuais. Sem dúvida, toda imagem simbólica “se encarnando numa cultura e numa linguagem cultural corre o risco de se esclerosar em dogma e sintaxe”[26] mas a alegoria barroca permitia, no mais das vezes, também um exercício da imaginação e da erudição, e o homem desta época era julgado intelectualmente por seus contemporâneos pela sua erudita capacidade de tecer as mais sutis correlações alegóricas. Benjamin observa que "a prática das metáforas provenientes da história natural, assim como o recurso minucioso às fontes históricas, exigia dos autores uma erudição excepcional"[27].


3. O FIM DA ERA DOS SIMBOLISMOS.
Acentuar as características que opõem o estilo barroco ao da renascença não é suficiente para obscurecer os laços de continuidade cultural existentes entre estes dois períodos. Mesmo os historiadores da arte - domínio onde as questões estilísticas costumam predominar sobre a história das idéias - já se deram conta de que o estilo barroco, como uma antítese do classicismo, é uma construção que não se sustenta; que os princípios de clareza e de unidade deste último em contraposição à obscuridade e multiplicidade do primeiro não os tornam necessariamente opostos e que os dois estilos dividem entre si um patrimônio comum bastante significativo[28] e assim como houve um protobarroquismo em Veneza convivendo com correntes clássicas do maneirismo florentino, houve também, lado a lado com o barroco imperial e florido de Roma, um barroco mais contido e sóbrio, quase clássico - aquele praticado em geral nas cortes do norte europeu.

Junto com Lewis Mumford, constato que o Barroco é uma continuidade do mundo do Renascimento[29]. Se houve cortes neste período, algo próximo daquilo a que Bachelard chamaria de corte epistemológico, estes situaram-se ao final da Idade Média, quando uma concepção de conhecimento fechado e completo foi substituída por uma concepção aberta e pronta à experimentação, e ao final do Barroco, quando uma cultura de religiosidade tradicional, onde predominava um racionalismo de verdades eternas que faziam uma ligação do espírito divino com a alma humana, é substituida por uma outra em que predomina um pensamento laico e onde a função da razão não é mais a transcendência. O corte instituído pelo iluminismo na prática religiosa e simbólica da humanidade foi bem mais profundo do que os ensaiados anteriormente; como bem observou Paul Hazard, o Iluminismo “..não se contentou com uma Reforma; o que ele quis abater foi a cruz; o que quis manchar foi a idéia de uma comunicação de Deus com o homem, de uma revelação; o que quis destruir foi toda uma concepção religiosa da vida”[30].

Por outro lado Iluminismo e Reforma tiveram suas proximidades e, assim como o barroco, floresceu com maior vigor nos países da Contra-reforma, nos países do norte onde o Iluminismo mais cedo se estabeleceu - em especial na França, Inglaterra e Alemanha - foram países que tiveram experiências significativas com o movimento reformista e onde preparou-se de alguma forma o terreno para o iluminismo e sua nova semântica: "Com os progressos da Reforma, o simbólico tendeu a desaparecer como expressão dos mistérios religiosos... O antigo amor pelo visual manifestou-se em representações simbólicas de natureza moral e política"[31].

Na minha hipótese, portanto, o predomínio das idéias do Iluminismo significa a vitória de um novo mundo e o fim daquele que nasceu quando do Renascimento, o fim do universo alegórico barroco. Sustento também que esse universo alegórico fantástico incrementado pelos primeiros humanistas italianos, assim como as tradições e festas trazidas pelo Renascimento, sobreviveram na cultura luso-americana até o início do século XIX, até o apagar das luzes definitivo da cultura barroca no ocidente.

Assim, poder-se-ia pensar o Barroco como período final de declínio e decadência de uma grande fase da cultura ocidental? Final sim, declínio e decadência não! O Barroco é a fase outonal do mundo renascentista, mas as mesmas restrições que Jacques Le Goff fez ao título da primeira tradução francesa do livro de Huizinga O Outono da Idade-média chamado então de O Declínio..., cabem ser retomadas aqui: as palavras declínio e decadência possuem um conteúdo de desvalorização moral e principalmente um conteúdo de esvaziamento de forças vitais que não podem ser aplicadas à cultura do Barroco sem se incorrer em grave erro de incompreensão: “O outono é esta estação onde parecem exaltar-se todas as fecundidades e todas as contradições da natureza. Ela é o que, na arte, Eugenio d’Ors chama a fase barroca, aquela onde se manifesta a nu, sem máscaras, a exaltação das tendências profundas de uma época. É esta exaltação que a torna tão fascinante. Pois, como cantava Agrippa d’Aubigné: ‘Une rose d’automne est plus qu’une autre exquise’” [32]

A noção de corte aplicado na transição do Barroco para o Iluminismo, entretanto, não impede que entre a cultura do Barroco e a que lhe seguiu tivesse havido algumas continuidades; o fato de que a cultura do Barroco foi o fim de um mundo que teve seus inícios no alvorecer da era moderna não significa que ela não tenha sido também pioneira em algumas das questões que a ligam com a contemporaneidade. Benjamin realça o fato de que se o Barroco é decadência, trata-se de "..decadência produtiva e preparatória de uma nova fase"[33]. Argan acentua especialmente o fato de no Barroco surgir a nossa cultura atual, baseada na visualidade e na propaganda: “..com o séc. XVII começa a civilização que será dita da imagem, a civilização moderna”[34].

Deve-se, contudo, realçar o papel simbólico que a imagem desempenha no Barroco, consideravelmente empobrecido nos séculos posteriores. É paradoxal que a cultura da contemporaneidade na qual abundam as imagens, onde cultua-se aos extremos o aparente, que aperfeiçoou os métodos de reprodução imagéticos (a imprensa, e a gravura), que posteriormente inventou a fotografia o cinema e a televisão, tenha, ao mesmo tempo, caminhado no sentido do iconoclasma. Com o fim do Barroco e o início do Iluminismo, com a predominância do pensamento cartesiano sobre o pensamento indireto e simbólico do neoplatonismo, o papel cultural da imagem impressa ou esculpida é minimizado ao extremo em um universo onde, a cada dia, triunfa um pouco mais a potência pragmática do signo. Trata-se de um iconoclasma pelo excesso, onde na imagem simbólica se negligencia o significado para não se fixar que à epiderme do sentido; o significante.


[1] A esse respeito ver o significativo artigo de Mircea ELIADE; “Le monde, la cité, la maison” in: Occultisme, sorcellerie et modes culturelles. Paris : Gallimard, 1978.
[2] Juan F. Esteban LORENTE. Tratado de iconografía. Madrid : Istmo, s/d.
[3] Apud: Pierre FRANCASTEL. A realidade figurativa. São Paulo : Perspectiva, 1982.
[4] André CHASTEL. Arte y humanismo en Florencia en la época de Lorenzo el Magnífico. Madrid : Cátedra, 1991.
[5] Jean SEZNEC. La survivance des dieux antiques. Paris : Flammarion, 1993. p.316.
[6] Nuno SALDANHA. Artistas, imagens e idéias na pintura do século XVIII. Lisboa : Horizonte, 1995. p.278.
[7] Pe. Raphael BLUTEAU. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra : No Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Tomo I, 1712. s/p.
[8] Affonso ÁVILA. “Festa barroca: ideologia e estrutura” in: América latina; palavra, literatura e cultura. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 1993. p.259.
[9] Pe. Luiz Gonçalves dos SANCTOS. Memórias para servir a história do reino do Brasil... Lisboa, na Impressão Regia, 1825. 02 Tomos. p. 266. O próprio espaço que Santos dedica nas suas Memórias a cada um destes acontecimentos é significativo: 02 páginas para o nascimento do príncipe, pp.231-233; 08 páginas para a morte do Infante de Espanha, pp. 257-264; 07 páginas para a morte da Infanta D. Marianna, pp. 277-283; 33 páginas para a morte da Rainha D. Maria I, pp. 37-70 do segundo volume.
[10] Barrow, a respeito do Rio de Janeiro em 1792. op.cit. p.98.
[11] idem, p.98.
[12] (VOLTAIRE. ?) apud: BARROW. op.cit. p.98.
[13] BENJAMIN. op.cit. p.241
[14] Elogio funeral do Principe D. Theodosio N. Senhor. Relaçaõ das exequias e lutos cõ que fentio fua morte o Exmo. Senhor João Roîz de Sa, Conde de Penaguiaõ (...) Efcrita por um criado que affiste a S. Excellencia. Londres (s/editor) 1653.
[15] Bento MORGANTI. Descripção funebre das exequias, que a Bazilica Patriarchal de Santa Maria dedicou á memoria do fidelissimo Senhor Rey Dom Joaõ V. Lisboa, Off. de Francisco da Silva, 1750.
[16] BENJAMIN. op.cit. p.242.
[17] Joam Borges de BARROS. Relação summaria dos funebres obsequios as memorias do reverendissimo Doutor Manoel de Mattos Botelho: Abbade de Duas Igrejas, Provifor, Vigario Geral e Governador do Bifpado de Miranda (...)Lisboa, na Regia Officina SYLVIANA e da Academia Real, 1745.
[18] SANTOS. op.cit. Tomo II. p.59.
[19] Bernardo Fernandes GAYO. Relaçaõ do magnifico e celebre maufoleo, que erigio a Santa Igreja Cathedral do Porto nas funeraes exequias da Serenissima Senhora D. Francifca de faudofa memória (...) Lisboa Occidental, Off. Joaquiniana da Musica, 1736.
[20] BENJAMIN. op.cit. p.191.
[21] apud. CHEVALIER & GHEERBRANT. Dictionnaire des symboles.
[22] BENJAMIN. op.cit. p.184.
[23] Francisco Leitam FERREIRA. Idea Poetica, Epithalamica, Panegyrica, que servio no Arco Triunfal, que a Nação Italiana mandou levantar na occafião em que as Mageftades dos Sereniffimos Reys de Portugal Dom Joam V & D. Marianna de Austria foram à cathedral de Lisboa no dia de Sabbado 22 de Dezembro de 1708. Lisboa : Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709.
[24] Os três são citados em Ferreira respectivamente, 9, 6 e 4 vezes cada, enquanto Camões é citado sete vezes. Os clássicos latinos mais citados são Suetonio e Virgílio; 4 e 3 vezes respectivamente.
[25] SEZNEC. op. cit. p.268.
[26] Gilbert DURAND. L'imagination symbolique. Paris : PUF, 1964. p.35.
[27] Walter BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão. São Paulo : Brasiliense, 1984. p.114.
[28] A este respeito ver: Claude-Gilbert DUBOIS. Le baroque; profondeurs de l'apparence. Presses Universitaires de Bordeaux. : 1993. p.12.
[29] Lewis MUMFORD. A cidade na história. São Paulo : Martins Fontes : Brasília : Ed. da UNB, 1982. p. 376.
[30] Paul HAZARD. El pensamiento europeu en el siglo XVIII. Madrid : Alianza, 1991.
[31] BENJAMIN. op.cit. p.190.
[32] LE GOFF in: J. HUIZINGA. L’automne du Moyen Age: précédé d’un entretien avec Jacques Le Goff. Paris, Payot, 1993. p. I.
[33] op.cit. p. 78.
[34] Giulio Carlo ARGAN. L’âge baroque. Genève, Albert Skira, 1994.