Tuesday, September 18, 2007

ICONOLOGIA DO ESPAÇO ARQUITETÔNICO NA CULTURA LUSO-AMERICANA

(Publicado originalmente in: RIBEIRO, Marília Andrés & RIBEIRO, Maria Izabel B. (org.) Anais do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Belo Horizonte : C/Arte, 2007. pp: 498-507. ISBN: 978-85-7654-053-3)

1. INTRODUÇÃO.
É mister reconhecer que uma obra arquitetônica jamais tem um caráter verdadeiramente icônico e nem poderia ser de outra forma, pois a arquitetura não é uma arte imitativa. Mas, desde que o homem passou a dominar com uma certa técnica a construção de suas moradas e a organização do seu espaço urbano, sempre - e isso pode ser encontrado nas mais diversas sociedades ainda que com as mais variadas intensidades - se colocou a tarefa em organizá-los de forma a que refletissem as suas concepções cosmogônicas, a sua mundivisão, tentando criar vínculos de ligação com os seus deuses. A casa, o templo, a cidade podem e devem também ser estudados como expressões dessas concepções[1]. “A planta (ou icnografia) como idéia primária da criação do espaço, foi em princípio patrimônio de Deus, quem ditou as medidas a seus representantes na Terra (reis e sacerdotes)[2].

2. RENASCIMENTO, BARROCO E SIMBOLISMO.
Como bem observou Renan, o homem sempre que em possessão de uma idéia clara divertiu-se em revesti-la de símbolos[3]. Ora, a arquitetura continuamente ocupou um lugar especial no pavilhão das artes, particularmente a partir do renascimento italiano quando, pode-se dizer, converte-se na arte par excellence. Platão, o objeto central dos estudos humanistas florentinos teceu comentários a respeito da arquitetura com a música no Filebo e desta com a filosofia, no Política, passagens estas que foram exaustivamente comentadas pelos especialistas da época[4]. É evidente que, com tal perspectiva em relação à primazia do objeto arquitetônico no campo das artes, a prática até então comum de fazer intervir de maneira contínua os textos - as referências literárias humanistas - e as obras artísticas, fosse incrementada também na prática arquitetônica, corroborando a imagem usual do Renascimento como uma sociedade marcada profundamente por uma comunicação do tipo simbólica. É assim que enfrentar a iconologia da obra arquitetônica aparece como uma prática indispensável para o estudo das culturas influenciadas por este período artístico tão fecundo e que deixou tantas marcas na cultura ocidental moderna.

Ainda que se leve em consideração o fato de que, a partir de Trento, a filosofia oficial da igreja foi o tomismo aristotélico, percebe-se que dificilmente as diretrizes implantadas por este Concílio conseguiram sufocar o vigor de um novo renascimento do símbolo e do pensamento indireto presentes com uma maior ênfase desde o Renascimento. O barroco é neoplatônico, tanto através da sua prática alegórico-artística, quanto através da sua prática religiosa, diga-se de passagem, ambas estreitamente relacionadas. Apesar do aparente paradoxo, Trento foi um incentivo para a prática alegórica barroca, pois a partir do momento em que o Concílio fez ouvir as suas advertências, "a alegoria, mais do que nunca, tornou-se um meio, uma sorte de expediente para se escapar à censura: ela inocenta as imagens pagãs tal como os contos licenciosos"[5]. Está no espírito do Barroco dar continuidade à tradição do pensamento indireto humanista, através do uso da alegoria: "os pressupostos neoplatônicos são a grande justificação da cultura simbólica do barroco, época por excelência da imagem"[6].

3. BARROCO, ALEGORIA E ARQUITETURA DO EFÊMERO.
A maneira como a concepção cosmogônica e o espaço artístico se relacionavam nem sempre era muito clara, pois intermediada por uma prática alegórica complexa, segundo o Pe. Bluteau chamada de "Continuæ translationes, porque na realidade Allegoria he huma continuada compofiçaõ de metaphoras"[7]. Estas relações poderiam parecer muitas vezes obscuras, distantes, ou sutis e refinadas; fosse na disposição da planta de uma igreja, no parterre de um jardim palaciano ou na organização plástico-espacial de uma pintura.

Foi talvez, na arquitetura do efêmero; em especial naquela da Eça funerária, que a alegoria barroca mostrou-se em toda sua plenitude. Os historiadores da arte que se debruçam sobre o século XVIII na América portuguesa não só realçam a permanência da cultura barroca do XVII, como enfatizam o caráter mórbido desta. Afonso Ávila fala do homem deste período como um homem residuariamente seiscentista, onde permanecem as características de um “gosto quase mórbido pelos motivos e representações de cunho dramático, noturno, lutuoso[8].

Observa-se uma obssessão na cultura barroca pela morte, a insistência nas idéias de transitoriedade e da vanitas culminaram no culto da morte e das almas dos mortos. Quase tudo nesta sociedade é centrado nestas questões. Este é, sem dúvida, o acontecimento ao qual se consagra o maior número, e as mais importantes cerimônias sociais. A comprovar essa obssessão barroca está o número impressionante de panegíricos fúnebres impressos no período, que excede largamente o das demais comemorações festivas. Uma leitura dos rituais que se deram quando, por exemplo, do nascimento do filho do Infante de Espanha no Rio de Janeiro e quando da morte deste mesmo Infante um ano após, em 1812, é revelador do peso dado ao segundo acontecimento em detrimento do primeiro; enquanto o nascimento do filho foi comemorado com três dias de luminárias e um grande ato religioso na Capela Real, à morte do pai sucedeu-se, por cerca de trinta dias, Exéquias nas inúmeras Igrejas de ordens, confrarias e irmandades da cidade, cada uma destas cerimônias querendo exceder à outra na construção de um mais suntuoso Mausoleo[9].

Pode-se observar também, que enquanto a Entrada Real é a comemoração que expressa mais adequadamente a cultura do Renascimento quiçá do Maneirismo, a comemoração lutuosa - Exéquia - é a que tipifica melhor o espírito do Barroco. Evidentemente, houve Exéquias suntuosas no Renascimento, assim como ainda no início do século XIX comemorava-se em grande gala a Entrada Real da arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, no Rio de Janeiro. Entretanto, se observarmos a concentração que cada evento guarda em seu respectivo século, através da vasta e completa coleção do abade Machado existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, constatamos que o auge dessa produção desenfreada de panegíricos e epitalâmios fúnebres coincide com o auge do barroco português, o final do reinado de D. João V.

Certamente não se morre nesta época mais do que nos períodos anteriores, porém se realça mais este fato enquanto ritual, seja o rito devido às mortes recentes; "dificilmente um dia passou-se, em que não víssemos alguma procissão de funeral, acompanhada por padres carregando tochas e cantando" observou John Barrow no Rio de Janeiro de 1792[10] seja através do culto das almas do purgatório; "a execução de um réquiem solene para alguma alma partida"[11] de forma que o satirista francês, ao afirmar que os portugueses “para honrar os mortos, fazem morrer os vivos[12] não estava muito longe da verdade.

Uma sociedade de tal forma voltada para o culto da morte não poderia ter como melhor expressão da sua cultura senão a arte funerária, a qual já se apresentava como uma arte efêmera, pois as Eças e Mausoléus construídos para as Exéquias das grandes personalidades eram obras que, muito adequadamente, comportavam todo o requinte e o fausto da arte barroca aliados à atração pelo transitório, e assim como Benjamin notou que o cadáver cumpria o papel de alegoria da physis[13] pode-se dizer que o mausoléu era a alegoria da vida, breve como ela, o que levava a que, logo após o término do culto, fosse imediatamente demolido apesar do esmero com que havia sido construído.

Um exame sobre as descrições destes mausoléus contidas nos inúmeros panegíricos que o século publicou - era comum a publicação destes panegíricos em Portugal desde o século XVI, mas a medida em que se entra pelo XVIII a dentro eles se tornam mais volumosos e verborrágicos - e um exame das gravuras que, ocasionalmente, acompanham estas descrições nos permitem dizer que, se o Barroco é de fato atração pelo horror, pelo mórbido e lutuoso, a cultura do Barroco acentua-se no XVIII português em relação ao XVII, devido ao aumento que se constata dessa produção tumulária inspirada no grotesco e no horrível.

Observa-se uma radical transformação no caráter destas obras de arte, desde as Exéquias do Principe Theodósio, filho e herdeiro de D. João IV, celebradas pelo embaixador português em Londres em uma cerimônia onde o mausoléu construído era de uma serena e austera aparência classicizante[14];




Até o mausoléu construído um século após na Igreja da Sé Patriarcal, quando das Exéquias de D. João V, este último, de gosto absolutamente barroco e lúbrico, onde os reposteiros de veludo negro e franja dourada contrastavam com os assustadores esqueletos prateados, ornando as colunas marmóreas que sustentavam o dossel[15]. Apenas neste último mausoléu aparece completo o esqueleto em todo o seu esplendor - um a cada lado da urna - esplendor fúnebre, persuasiva imagem retórica da morte; o cadáver como "o supremo adereço cênico, emblemático, do barroco.."[16] .


Nas Exéquias realizadas em Salvador em 1745 para o Abade Botelho, irmão do Primaz do Brasil, o panegirista resumiria bem este sentimento da atração barroca pelo horrível; “Na primorofa Eça, que mandaraõ levantar no meyo de fua Igreja, em que ardia huma infinita multidaõ de luzes, pudera fufpeitarfe, que quizeraõ lifongear os lutos, horrorizando o bello, e formofeando o horrorofo . Sendo aquella eftancia infalivel argumento da mortalidade, fatal defengano da humana natureza”[17]. Aliado ao horror da temporalidade humana aparecem os temas barrocos do desengano e da vanitas. O discurso retórico e teatral do Barroco tem a intenção de impressionar não só pelo belo mas também pelo horrível; observa-se que o período tem uma leitura própria de Aristóteles e da sua teoria da catarse e acredita nesta, servindo aos seus objetivos ritualísticos de inspirar sempre o respeito e a admiração, através da atemorização. Referindo-se ao mausoléu erigido no Rio de Janeiro por ocasião do falecimento de D.Maria I e do culto realizado na Capela Real em intenção de sua alma, o Padre Santos, em suas memórias, relatou que o altar-mor estava "..profusamente iluminado, o que, juncto com o funebre da armação, excitava em todos hum sancto pavor..."[18].

Também o uso da emblemática se acentua no século XVIII; nas Exéquias de Theodosio o número de alegorias e emblemas que decoraram seu mausoléu não ultrapassaram uma dezena, enquanto nas honras fúnebres da Infanta D. Francisca - no século seguinte - apareciam pelo menos, quarenta e oito emblemas estampados acompanhados de motes[19], assim como também nas de D. João V, realizadas na Basílica Patriarcal, este número era de quase trinta; "no Barroco maduro, a distância que separa suas produções dos primórdios da emblemática, um século antes, torna-se mais perceptível, as afinidades com o símbolo se tornam mais evanescentes, e a ostentação hierática se torna mais imperiosa"[20].

A tendência instaurada a partir do romantismo foi sempre o de desvalorizar a alegoria frente ao símbolo, dela teria dito Goëthe que se tratava de um símbolo resfriado[21], mas o homem barroco não fazia distinção a respeito e embora sua alegoria contivesse, de fato, um alto teor de convencionalismo e de precisão discursiva, garantida pela profusão das múltiplas e sucessivas edições de manuais e dicionários de iconologia publicados a partir do século XVI, ainda assim estava longe de uma prática rígida e castradora na qual foi reduzida a alegoria no iluminismo. Ao contrário do que se constituiu a alegoria deste último período, a alegoria barroca não era “..frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem, e como a escrita”[22].

O Barroco configurou-se como o período dos manuais iconológicos. É bem verdade que os mais famosos, como Cartari (1556), ou a Iconologia de Ripa (1593) são do período anterior, mas é no século XVII e no XVIII que chegam a conhecer a ampla divulgação que tiveram, atestada pelas inúmeras edições e acréscimos que sofreram. Trabalharam, entretanto, de forma significativa para a formação de uma prática alegórica no mundo português, a literatura da época que majoritariamente se constituiu de panegíricos, epitalâmios, elogios. Muitos desses opúsculos, sob o pretexto de fazer uma descrição de algum funeral, davam uma pequena aula de iconologia. Muitas vezes, o opúsculo publicado sequer utilizava-se de pretexto, dizendo diretamente no título a que vinha, tal como a Idea Poetica...[23] de autoria de Francisco Leitão Ferreira e publicada em 1709 que tinha como propósito eternizar a obra de arquitetura efêmera, na medida em que a descrevia detalhadamente e explicava o seu conteudo iconográfico: tratava-se de um Arco do Triunfo e suas alegorias, que a nação italiana em Lisboa construíra quando da Entrada nesta cidade de D. Marianna d'Austria. Esta brochura é preciosa, pois se constitui num verdadeiro tratado iconológico da arte portuguesa do dezoito. Ferreira, enquanto autor do programa iconográfico do referido Arco, apresenta-nos mais do que um histórico da origem das Entradas; ali estão presentes todas as concepções que a época agasalhava a respeito desses cerimoniais, assim como as alegorias adequadas para diversas situações (teoria do decorum), suas interpretações e suas fontes clássicas. Por ele ficamos sabendo que o Barroco português trabalhava ainda com os primeiros manuais do Renascimento italiano, que, junto com Camões, a referência de cunho nacional, citava-se profusamente - mais inclusive do que os clássicos gregos e latinos – eram eles Vicenzo Cartari, Lilio Gyraldi e Natale Conti[24], todos publicados entre 1548 e 1566 e que, segundo Jean Seznec, conheceram grande repercussão e sucesso por toda a Europa do seu tempo[25].

Para que se possa estudar adequadamente os significados alegóricos na arte luso-brasileira não basta a consulta aos manuais clássicos que encontramos com maior facilidade. A nossa avaliação tardia, que trabalha com valores diversos aos da época, tende a valorizar um Alciati e um Ripa, por exemplo, que nos dias de hoje encontram edições populares facsimiladas, em detrimento de outras, caídas no esquecimento e que, apesar de serem produzidas por autores obscuros, muitas vezes meros compiladores de trabalhos anteriores, tiveram grande repercussão e influenciaram gerações do Renascimento ao Barroco. Além disso, é indispensável o acesso à familiaridade e à prática de como estas alegorias eram reapropriadas pela cultura portuguesa, e só é possível ter acesso a esta prática, através do convívio com obras como estes pequenos livros descritivos de Exéquias e de Entradas, que o século editou às centenas.

Não é certo que a alegoria fosse para o homem barroco um estéril exercício de retórica discursiva que ele simplesmente tomava de empréstimo aos manuais. Sem dúvida, toda imagem simbólica “se encarnando numa cultura e numa linguagem cultural corre o risco de se esclerosar em dogma e sintaxe”[26] mas a alegoria barroca permitia, no mais das vezes, também um exercício da imaginação e da erudição, e o homem desta época era julgado intelectualmente por seus contemporâneos pela sua erudita capacidade de tecer as mais sutis correlações alegóricas. Benjamin observa que "a prática das metáforas provenientes da história natural, assim como o recurso minucioso às fontes históricas, exigia dos autores uma erudição excepcional"[27].


3. O FIM DA ERA DOS SIMBOLISMOS.
Acentuar as características que opõem o estilo barroco ao da renascença não é suficiente para obscurecer os laços de continuidade cultural existentes entre estes dois períodos. Mesmo os historiadores da arte - domínio onde as questões estilísticas costumam predominar sobre a história das idéias - já se deram conta de que o estilo barroco, como uma antítese do classicismo, é uma construção que não se sustenta; que os princípios de clareza e de unidade deste último em contraposição à obscuridade e multiplicidade do primeiro não os tornam necessariamente opostos e que os dois estilos dividem entre si um patrimônio comum bastante significativo[28] e assim como houve um protobarroquismo em Veneza convivendo com correntes clássicas do maneirismo florentino, houve também, lado a lado com o barroco imperial e florido de Roma, um barroco mais contido e sóbrio, quase clássico - aquele praticado em geral nas cortes do norte europeu.

Junto com Lewis Mumford, constato que o Barroco é uma continuidade do mundo do Renascimento[29]. Se houve cortes neste período, algo próximo daquilo a que Bachelard chamaria de corte epistemológico, estes situaram-se ao final da Idade Média, quando uma concepção de conhecimento fechado e completo foi substituída por uma concepção aberta e pronta à experimentação, e ao final do Barroco, quando uma cultura de religiosidade tradicional, onde predominava um racionalismo de verdades eternas que faziam uma ligação do espírito divino com a alma humana, é substituida por uma outra em que predomina um pensamento laico e onde a função da razão não é mais a transcendência. O corte instituído pelo iluminismo na prática religiosa e simbólica da humanidade foi bem mais profundo do que os ensaiados anteriormente; como bem observou Paul Hazard, o Iluminismo “..não se contentou com uma Reforma; o que ele quis abater foi a cruz; o que quis manchar foi a idéia de uma comunicação de Deus com o homem, de uma revelação; o que quis destruir foi toda uma concepção religiosa da vida”[30].

Por outro lado Iluminismo e Reforma tiveram suas proximidades e, assim como o barroco, floresceu com maior vigor nos países da Contra-reforma, nos países do norte onde o Iluminismo mais cedo se estabeleceu - em especial na França, Inglaterra e Alemanha - foram países que tiveram experiências significativas com o movimento reformista e onde preparou-se de alguma forma o terreno para o iluminismo e sua nova semântica: "Com os progressos da Reforma, o simbólico tendeu a desaparecer como expressão dos mistérios religiosos... O antigo amor pelo visual manifestou-se em representações simbólicas de natureza moral e política"[31].

Na minha hipótese, portanto, o predomínio das idéias do Iluminismo significa a vitória de um novo mundo e o fim daquele que nasceu quando do Renascimento, o fim do universo alegórico barroco. Sustento também que esse universo alegórico fantástico incrementado pelos primeiros humanistas italianos, assim como as tradições e festas trazidas pelo Renascimento, sobreviveram na cultura luso-americana até o início do século XIX, até o apagar das luzes definitivo da cultura barroca no ocidente.

Assim, poder-se-ia pensar o Barroco como período final de declínio e decadência de uma grande fase da cultura ocidental? Final sim, declínio e decadência não! O Barroco é a fase outonal do mundo renascentista, mas as mesmas restrições que Jacques Le Goff fez ao título da primeira tradução francesa do livro de Huizinga O Outono da Idade-média chamado então de O Declínio..., cabem ser retomadas aqui: as palavras declínio e decadência possuem um conteúdo de desvalorização moral e principalmente um conteúdo de esvaziamento de forças vitais que não podem ser aplicadas à cultura do Barroco sem se incorrer em grave erro de incompreensão: “O outono é esta estação onde parecem exaltar-se todas as fecundidades e todas as contradições da natureza. Ela é o que, na arte, Eugenio d’Ors chama a fase barroca, aquela onde se manifesta a nu, sem máscaras, a exaltação das tendências profundas de uma época. É esta exaltação que a torna tão fascinante. Pois, como cantava Agrippa d’Aubigné: ‘Une rose d’automne est plus qu’une autre exquise’” [32]

A noção de corte aplicado na transição do Barroco para o Iluminismo, entretanto, não impede que entre a cultura do Barroco e a que lhe seguiu tivesse havido algumas continuidades; o fato de que a cultura do Barroco foi o fim de um mundo que teve seus inícios no alvorecer da era moderna não significa que ela não tenha sido também pioneira em algumas das questões que a ligam com a contemporaneidade. Benjamin realça o fato de que se o Barroco é decadência, trata-se de "..decadência produtiva e preparatória de uma nova fase"[33]. Argan acentua especialmente o fato de no Barroco surgir a nossa cultura atual, baseada na visualidade e na propaganda: “..com o séc. XVII começa a civilização que será dita da imagem, a civilização moderna”[34].

Deve-se, contudo, realçar o papel simbólico que a imagem desempenha no Barroco, consideravelmente empobrecido nos séculos posteriores. É paradoxal que a cultura da contemporaneidade na qual abundam as imagens, onde cultua-se aos extremos o aparente, que aperfeiçoou os métodos de reprodução imagéticos (a imprensa, e a gravura), que posteriormente inventou a fotografia o cinema e a televisão, tenha, ao mesmo tempo, caminhado no sentido do iconoclasma. Com o fim do Barroco e o início do Iluminismo, com a predominância do pensamento cartesiano sobre o pensamento indireto e simbólico do neoplatonismo, o papel cultural da imagem impressa ou esculpida é minimizado ao extremo em um universo onde, a cada dia, triunfa um pouco mais a potência pragmática do signo. Trata-se de um iconoclasma pelo excesso, onde na imagem simbólica se negligencia o significado para não se fixar que à epiderme do sentido; o significante.


[1] A esse respeito ver o significativo artigo de Mircea ELIADE; “Le monde, la cité, la maison” in: Occultisme, sorcellerie et modes culturelles. Paris : Gallimard, 1978.
[2] Juan F. Esteban LORENTE. Tratado de iconografía. Madrid : Istmo, s/d.
[3] Apud: Pierre FRANCASTEL. A realidade figurativa. São Paulo : Perspectiva, 1982.
[4] André CHASTEL. Arte y humanismo en Florencia en la época de Lorenzo el Magnífico. Madrid : Cátedra, 1991.
[5] Jean SEZNEC. La survivance des dieux antiques. Paris : Flammarion, 1993. p.316.
[6] Nuno SALDANHA. Artistas, imagens e idéias na pintura do século XVIII. Lisboa : Horizonte, 1995. p.278.
[7] Pe. Raphael BLUTEAU. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra : No Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Tomo I, 1712. s/p.
[8] Affonso ÁVILA. “Festa barroca: ideologia e estrutura” in: América latina; palavra, literatura e cultura. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 1993. p.259.
[9] Pe. Luiz Gonçalves dos SANCTOS. Memórias para servir a história do reino do Brasil... Lisboa, na Impressão Regia, 1825. 02 Tomos. p. 266. O próprio espaço que Santos dedica nas suas Memórias a cada um destes acontecimentos é significativo: 02 páginas para o nascimento do príncipe, pp.231-233; 08 páginas para a morte do Infante de Espanha, pp. 257-264; 07 páginas para a morte da Infanta D. Marianna, pp. 277-283; 33 páginas para a morte da Rainha D. Maria I, pp. 37-70 do segundo volume.
[10] Barrow, a respeito do Rio de Janeiro em 1792. op.cit. p.98.
[11] idem, p.98.
[12] (VOLTAIRE. ?) apud: BARROW. op.cit. p.98.
[13] BENJAMIN. op.cit. p.241
[14] Elogio funeral do Principe D. Theodosio N. Senhor. Relaçaõ das exequias e lutos cõ que fentio fua morte o Exmo. Senhor João Roîz de Sa, Conde de Penaguiaõ (...) Efcrita por um criado que affiste a S. Excellencia. Londres (s/editor) 1653.
[15] Bento MORGANTI. Descripção funebre das exequias, que a Bazilica Patriarchal de Santa Maria dedicou á memoria do fidelissimo Senhor Rey Dom Joaõ V. Lisboa, Off. de Francisco da Silva, 1750.
[16] BENJAMIN. op.cit. p.242.
[17] Joam Borges de BARROS. Relação summaria dos funebres obsequios as memorias do reverendissimo Doutor Manoel de Mattos Botelho: Abbade de Duas Igrejas, Provifor, Vigario Geral e Governador do Bifpado de Miranda (...)Lisboa, na Regia Officina SYLVIANA e da Academia Real, 1745.
[18] SANTOS. op.cit. Tomo II. p.59.
[19] Bernardo Fernandes GAYO. Relaçaõ do magnifico e celebre maufoleo, que erigio a Santa Igreja Cathedral do Porto nas funeraes exequias da Serenissima Senhora D. Francifca de faudofa memória (...) Lisboa Occidental, Off. Joaquiniana da Musica, 1736.
[20] BENJAMIN. op.cit. p.191.
[21] apud. CHEVALIER & GHEERBRANT. Dictionnaire des symboles.
[22] BENJAMIN. op.cit. p.184.
[23] Francisco Leitam FERREIRA. Idea Poetica, Epithalamica, Panegyrica, que servio no Arco Triunfal, que a Nação Italiana mandou levantar na occafião em que as Mageftades dos Sereniffimos Reys de Portugal Dom Joam V & D. Marianna de Austria foram à cathedral de Lisboa no dia de Sabbado 22 de Dezembro de 1708. Lisboa : Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709.
[24] Os três são citados em Ferreira respectivamente, 9, 6 e 4 vezes cada, enquanto Camões é citado sete vezes. Os clássicos latinos mais citados são Suetonio e Virgílio; 4 e 3 vezes respectivamente.
[25] SEZNEC. op. cit. p.268.
[26] Gilbert DURAND. L'imagination symbolique. Paris : PUF, 1964. p.35.
[27] Walter BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão. São Paulo : Brasiliense, 1984. p.114.
[28] A este respeito ver: Claude-Gilbert DUBOIS. Le baroque; profondeurs de l'apparence. Presses Universitaires de Bordeaux. : 1993. p.12.
[29] Lewis MUMFORD. A cidade na história. São Paulo : Martins Fontes : Brasília : Ed. da UNB, 1982. p. 376.
[30] Paul HAZARD. El pensamiento europeu en el siglo XVIII. Madrid : Alianza, 1991.
[31] BENJAMIN. op.cit. p.190.
[32] LE GOFF in: J. HUIZINGA. L’automne du Moyen Age: précédé d’un entretien avec Jacques Le Goff. Paris, Payot, 1993. p. I.
[33] op.cit. p. 78.
[34] Giulio Carlo ARGAN. L’âge baroque. Genève, Albert Skira, 1994.





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