Saturday, May 06, 2006

O CLAUSTRO E A FONTE: um estudo iconológico do claustro do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro.

Autor: Nelson Pôrto Ribeiro.
(publicado originalmente in: Barroco. Belo Horizonte, ano 35, n. 19, p. 199-212, 2004).

1. INTRODUÇÃO: O CLAUSTRO E SEU SIGNIFICADO.
O estudo dos jardins de claustros portugueses na América no século XVIII é dificultado pelo fato de não possuirmos pesquisas específicas sobre o assunto, assim como da suposição de que parte destes claustros possam ter tido seus canteiros, pisos, fontes, alterados ao longo dos anos, fosse por questões decorativas fosse por questões práticas. Embora em termos gerais possamos afirmar que, em relação ao espaço religioso, a lei da inércia tende a predominar em detrimento de um genérico anseio de mudanças nem por isso devemos deixar de admitir que seria altamente desejável que um estudo arqueológico e histórico-iconográfico dirimisse dúvidas e possibilitasse afirmações mais conclusivas.

Quanto ao significado e a importância deste espaço na vida conventual, não é suficiente afirmar, como o faz Germain Bazin, que “a disposição das construções monásticas sempre são inspiradas no princípio medieval do claustro que concentra os locais de vida em comum”(BAZIN. 1983. p.119), muito menos como o faz Mott, de que "os claustros eram espaços de recolhimento e meditação, mas também de sociabilidade.."(MOTT. 1997. p.192), pois se o claustro de um convento de fato era um lugar onde tudo isso se passava, ainda assim estas afirmações não fazem jus àquele que devemos considerar como o centro simbólico e espacial de toda a vida monástica.

O claustro está intimamente ligado a uma concepção de vida contemplativa que, se não era exclusiva da vida conventual, ao menos se pode afirmar que encontra sua origem nela. O neoplatonismo florentino, na antítese que fazia de vida ativa versus vida contemplativa, identificava esta última com a religio (PANOFSKY. 1984. p. 274), e não se deve estranhar que as ordens monásticas mais afeitas à vida enclausurada e contemplativa fossem justamente as mais próximas do mundo das idéias neoplatônicas, tal como os franciscanos. O fato de a cultura ocidental ter tido a sua continuidade - desde os tempos latinos - assegurada pela vida conventual da Idade Média, estreitou ainda mais fortemente os vínculos da religião com a contemplação e o saber. Francisco Stastny, em recente trabalho de iconologia, demonstrou como a universidade, o claustro, o hortus conclusus e a árvore da sabedoria estão intimamente ligados praticamente até o século XVIII nas instituições de ensino superior na América hispana (STASTNY. 1983).

O claustro conventual constituía o local onde os monges se iniciavam na vida contemplativa. É natural, portanto, que fosse o local escolhido para o desenvolvimento dos programas iconográficos artísticos mais complexos. Quando os franciscanos de Salvador, na Bahia, incorporaram em diversos locais de seu convento - entre eles o refeitório, enfermaria, sala de visitas - revestimentos em azulejos com painéis artísticos de fundo moral e religioso, a série mais importante, tanto em termos artísticos quanto em termos simbólicos, foi a escolhida para ser colocada no claustro. Tratava-se de uma série de trinta e dois painéis baseada no ‘Teatro Moral da Vida Humana’ de Vaenius, e que, segundo Santiago Sebastian, divulgava as concepções de um dos livros de emblemas mais difundido na Espanha e na América hispana (SEBASTIAN. 1997. p. 316).

Quase que usualmente esses claustros apareciam situados numa posição central em relação ao conjunto dos edifícios conventuais: pátios invariavelmente quadrangulares com uma fonte no meio. O claustro do Convento de Santa Teresa, em Salvador (Fig.01; abaixo), apresenta ainda jardineiras divididas em quatro e subdivididas em oito, fazendo o desenho de um círculo inscrito num quadrado, com uma fonte central de pedra. Também o claustro do convento do Carmo, na mesma cidade, apresenta um jardim quadrado com um círculo inscrito, dividido em quatro, e com uma fonte ao centro. Os claustros franciscanos - Olinda, Recife, Salvador - por sua vez não apresentam jardineiras, mas estão dispostos com uma forte marcação na pavimentação em diagonal, dividindo-os em quatro partes; o de Salvador possui ainda uma fonte no centro.


Pode-se constatar como elementos que persistem na organização espacial destes claustros conventuais a divisão do quadrilátero do pátio em quatro - seja por marcação na pavimentação, seja por arrumação das jardineiras - muitas vezes inscrito ou contendo um círculo, quase invariavelmente arrematado por uma fonte circular central. Trata-se sem dúvida, de representações da fons vitae colocada no centro do mundo, cercada pelas quatro partes do mundo material e sobrepostas ao grande círculo do mundo supralunar. Aqui, o claustro conventual aparece também, como local privilegiado onde o contato entre os dois níveis - o terrestre e o celeste - é possível. Local, portanto, de contemplação e de comunicação com o divino. São representações razoavelmente convencionais sobre as quais não é necessário que nos detenhamos, é conhecido que o claustro conventual representava um hortus conclusus todo especial; não apenas o Paraíso Terreal, o centro espiritual da Terra, como também o jardim da Virgem, um jardim onde ela aceitava conviver apenas com os mais santificados: iconograficamente, a presença deste hortus conclusus na arte portuguesa pode ser observada em uma pintura de caráter ainda medieval, embora do século XVI, como a ‘Virgem com o menino e anjos num jardim’ de Gregório Lopes, pintada para a charola do Convento do Cristo de Tomar, representando um jardim fechado, onde a Virgem mantém uma sacra conversação com os anjos, enquanto o divino menino brinca aos seus pés; aos fundos, pode-se ver uma fonte com elemento vertical no centro, donde brota água na direção dos quatro pontos cardeais. Gregório Lopes era afeito à prática neoplatônica (cf. SERRÃO. 1999. p. 48). Estas representações foram comuns na iconografia portuguesa e, sem dúvida, preenchiam ainda o imaginário dos pintores e artistas lusos que vieram para o Novo Mundo.

Talvez não seja demais reafirmar como o claustro, no clima tropical e subtropical da América funcionou como local privilegiado de aclimabilidade, possibilitando não apenas trazer luz e aeração para o interior da construção conventual, mas algumas vezes constituindo aquilo que hoje denominamos por um microclima, através de uma verdejante e exuberante vegetação que possibilitava um frescor oásico no meio do calor generalizado. Estou pensando em especial nos claustros conventuais da América hispana, como os de Cuba. Por outro lado, pelo que conhecemos de antigas fotografias do Convento da Ajuda quando este já estava abandonado e prestes a ser demolido (Fig.02), pelas dimensões exibidas, pela fonte generosa de água no seu centro e pelo resto de vegetação de grande porte que ainda restava; pode-se avaliar que ele no seu auge não deveria ter ficado muito distante em exuberante aparência dos claustros hispanos da América Central. Aqui, o pátio conventual soma à tradição cristã do hortus conclusus; a tradição árabe - sempre tão presente na península ibérica - do hortus deliciarum.


2. O CLAUSTRO DO CONVENTO DA AJUDA.
O Convento da Ajuda, para o qual Mestre Valentim teria projetado o Chafariz das Saracuras, era um enorme conjunto de construções situadas numa extremidade da capital da América portuguesa, logo abaixo do morro do Castelo, em frente à praia do Boqueirão e ao lado do Passeio Público. Segundo Pizarro de Araújo a primeira pedra desta construção foi lançada em 1745 e para a introdução das jovens pretendentes à vida religiosa vieram do Convento do Desterro na Bahia quatro religiosas clarissas, com o intuito de que se adotasse na Ajuda, a Regra de Santa Clara (ARAUJO. 1822. p.254); contudo, pelo Breve de sete de janeiro de 1750, foi adotado para este convento o estatuto das concepcionistas franciscanas(UMA DATA, 1950).
A atribuição do Chafariz das Saracuras a Valentim provém de José Marianno Filho (1943). Não existe documentação a respeito, sequer tradição oral. Toda ela baseia-se no fato de que Valentim era, à época (1795), o único artista suficientemente habilitado pela experiência para tanto. Além disso - o que me parece bastante coerente - interpreta-se a forja dos elementos metálicos, representando animais da nossa flora como saracuras e tartarugas, como praticamente por uma assinatura do artista, pois como bem lembra Magalhães Correa em relação à fundição das peças do chafariz do Lagarto; “os únicos fundidores de peças de arte no Rio de Janeiro nessa época”(CORREA. 1935. p.64) eram Valentim e seu ajudante.

A fonte que Valentim levantou, destinava-se ao centro do futuro claustro do Convento – pois a época a construção não estava acabada. Sabemos que havia um projeto completo da construção, de autoria do engenheiro militar brigadeiro José Fernandes de Pinto Alpoim (cf. FAZENDA. 1919. p.276) e pelo qual, com toda certeza, estava muito bem localizado o futuro claustro conventual e a sua fonte. A Fig.03 mostra em plano, o desenvolvimento cronológico das construções conventuais.
A fonte foi lavrada em granito carioca (gneiss) e possui detalhes em bronze - as saracuras, as tartarugas e a cruz latina; assim como em lioz - a placa comemorativa do evento e as armas do Conde de Resende, vice-rei à época (Fig.04).


O partido da composição é rigorosamente simétrico, o chafariz assenta-se em uma base circular e elevada, dividida em oito segmentos radiais e iguais, e onde se alternam intercalados quatro tanques com quatro lances de escada de acesso, cada lance com quatro degraus que levam ao centro da base; onde situa-se uma nova fonte em forma de taça, acima desta, uma agulheta piramidal com cerca de três metros de altura no topo da qual foi colocada uma pequena cruz latina em bronze. As saracuras colocadas na base do obelisco eram em número de quatro, cada uma a um ângulo do quadrilátero piramidal, assim como as tartarugas, cada uma no topo de uma das quatro fontes perimetrais. A água jorrava pela boca das saracuras sobre a face superior côncava da taça, reaparecendo logo depois na boca das tartarugas (MARIANNO. 1943. p.67). A cartela em lioz com o brasão imediatamente acima, arremata o corpo do obelisco (Fig.05).


É suficiente uma aproximação rápida do conjunto para se perceber que se trata de uma obra rica em significados simbólicos: o chafariz de Valentim é uma elaborada elegia ao quadrilátero do mundo material e ao círculo do mundo celeste, intermediados pelo octógono. Portanto, Valentim não fugiu da tradição das fontes circulares de claustro embora tenha construído um conjunto fortemente original que não encontra predecessores a não ser longínquos. Valentim deixa de lado a usual divisão do jardim de claustro em um quadrado contendo um círculo, e incorpora estes elementos e seus significados, no conjunto arquitetônico, uma fonte central com quatro periféricas inscritas em um círculo. O elemento principal deste chafariz é a fonte central de onde brota a agulheta piramidal, as quais, por suas formas evidentes, traçam um inegável paralelo com o tema da taça e da lança.

Ainda que se contra-argumente o fato desta agulheta piramidal assemelhar-se mais a um obelisco do que propriamente a uma lança, dado às suas proporções pouco adelgaçadas, é possível supor-se que o material pétreo à disposição do artista o fizesse mais propenso a executar um artefato final mais robusto, mais próximo de uma espada. Sobre o ponto de vista formal não há dúvida de que existe uma diferença nítida entre um obelisco e uma lança genérica, e o que nós temos no chafariz das Saracuras é sem dúvida um obelisco, e não uma lança. Por outro lado, sobre o ponto de vista simbólico, a proximidade dos obeliscos em geral, com a lança de Longinus, que é uma lança específica, é muito estreita, e em alegoria a proximidade simbólica vale mais do que a formal, em especial nas alegorias arquitetônicas.

A reapropriação do obelisco na cultura ocidental é baseada principalmente na Hypnerotomachia (o sonho de Poliphili – Francesco Colonna - 1499), texto de extrema importância para as alegorias renascentistas e barrocas e onde o obelisco egípcio é interpretado como um símbolo da imortalidade da alma, da ressurreição, expressa através da sua intencionalidade vertical, que aspira aos céus. Ora, a lança de Longinus, na mística cristã, e em especial na mística franciscana - que são os comitentes do chafariz das Saracuras – é vista como instrumento da Ressurreição, como veremos melhor à frente. Na verdade quando Valentim escolhe intencionalmente um obelisco para ficar no lugar da lança, num chafariz que tem como tema principal a taça e a lança, ele nada mais faz do que se manter dentro da tradição alegórica barroca, que é a de continuae translationes, metáforas sucessivas que afastam o significante do seu significado. Enfim, como interpretar o fuste circular e sua modenatura, que antecedem o obelisco das Saracuras, senão como a empunhadura e sua respectiva proteção que antecedem a lâmina da lança? Como interpretar a inusitada composição de um obelisco coroado por uma cruz latina por cima de uma fonte circular em copa, senão como os três elementos centrais que compõem o tema da taça e da lança, que são, respectivamente: a cruz do Cristo, a lança de Longinus e o cálice do Santo Graal?

É bem verdade que uma fonte circular possuindo um ornamento verticalizado no seu centro foi ordenação bastante usual na arquitetura lusa de claustros conventuais. Não é menos verdade também que todas estas fontes de claustro, em última instância, remetem a uma idéia de fons vitae ou fons pietatis que, como veremos melhor à frente, é comum ao chafariz de Valentim, e embora um elemento verticalizante acoplado a uma taça circular seja de fato uma composição usual para fontes centrais de claustros, uma fonte exatamente com os mesmos elementos e características que a de Valentim - a taça, o obelisco e a cruz - no centro de uma composição circular maior com quatro fontes secundárias e perimetrais, me parece absolutamente original.

A taça e a lança foi um tema bastante popularizado, com larga penetração na península Ibérica através das narrativas do ciclo dos mitos arturianos (PEREIRA. 1995. p.278). Este tema reaparece na Legenda Dourada de Voragine, uma das obras que normalizou a história de santos e mártires da igreja de modo a fornecer material temático para os programas iconográficos da época: "Uma das características da iconografia barroca será a volta à hagiografia medieval, recorrendo novamente à 'Legenda Dourada' para enriquecer o repertório de representações", afirma Sebastian (1981. p.309).

Pela Legenda dourada sabemos que Longinus foi o lendário centurião romano que, utilizando uma lança, abriu o costado de Jesus crucificado, segundo ainda a lenda, teria se convertido ali mesmo, aos pés da cruz, passando a ser o primeiro dos conversos a sair pelo mundo, dando o testemunho da divindade do Cristo (VORAGINE. 1993. p.184). Os humanistas da Reforma costumavam escandalizar-se perante o fato da Igreja papista ter aceitado uma lenda totalmente duvidosa, canonizando justamente o verdugo do filho de Deus. Réau, muito oportunamente, observou que este assombro parte de uma incompreensão da doutrina cristã e da importância que para os místicos do simbolismo a lança toma enquanto condição sine qua non para a salvação do homem; um hino medieval em louvor da lança de Longinus afirmava: “Salvação, ferro triunfal entrando no peito do Senhor, tu nos abres as portas do Céu” (RÉAU. 1997. p.253).

Ora, Valentim, na sua fonte, associou o tema da taça e da lança com os temas recorrentes da fons vitae, da fons pietatis e da fons sapientiae, temas medievais por excelência e que no período do Barroco desempenharam um papel secundário na iconografia religiosa, mas que mantiveram a sua expressividade simbólica, perfeitamente adequada ao local em que o artista os utilizou: o claustro central de um convento religioso. Observe-se que, de todos os espaços religiosos, o claustro conventual é o que revelou, através da história, menor mutabilidade, mantendo-se, desde os tempos medievais até o barroco, praticamente o mesmo, ao contrario do espaço da nave da igreja que sofreu varias transformações radicais através deste mesmo período.

Estas fontes, em suma, são todas representações em que o Cristo aparece em sua cruz como que pairando, de forma a que o sangue proveniente de suas cinco chagas jorre diretamente na água da fonte, misturando-se com esta. Através deste simbolismo místico, pretendia-se exaltar a generosidade do Amor divino, doando, com o seu próprio sangue, os dons da vida, da fé e da sabedoria que conduzem à felicidade da vida eterna. Segundo Réau, a devoção das cinco chagas expressou-se alegoricamente na representação da “fonte da Vida, cheia com o sangue de Cristo, que purifica as almas e cura os corpos” (REAU. p.531).

A hipótese de alguns autores, que vêm nas saracuras e nas tartarugas do chafariz, assim como também em outras decorações que Valentim forjou para outros locais um sentido de catalogação da natureza carioca, de proposta iluminista; diante de um exame mais atento não se sustenta. Primeiramente, porque me parece precipitado avançar para o século XVIII uma preocupação que no Rio de Janeiro só aparece no XIX após a chegada dos primeiros naturalistas europeus. Não que o barroco não tivesse um propósito de catalogação da natureza, o mesmo propósito que se encontra em Aristóteles, para quem a estrutura do mundo inteiro assemelhava-se à estrutura do reino animal, ainda hoje classificado à sua maneira, de acordo com genus e species. Sabemos que o barroco português foi especialmente aristotélico neste aspecto e utilizou-se, em particular, da ‘Historia naturalis’ de Plínio. Aliás, manuais renascentistas e barrocos como a famosa ‘Iconologia’ de Ripa eram, segundo Gombrich, impregnados de aristotelismo, pois firmemente conectados com a lógica classificatória de Aristóteles (GOMBRICH. 1972). Mas a existência de uma lógica classificatória barroca – e totalmente distinta da iluminista – não deve ofuscar o fato de que a presença destes animais forjados em bronze tinha, sobretudo, um propósito simbólico.

Saracura e tartaruga (jaboti segundo Marianno Filho), ave e réptil, um animal dos céus e o outro das entranhas da terra, nitidamente um contraste entre o celeste e o ctônico; o paradoxo tanto estimado pela arte barroca. As aves situam-se na fonte central, que é a fonte celeste, o manancial divino; enquanto as tartarugas posicionam-se alimentando as quatro fontes que brotariam no Paraíso Terreal. Uma ilustração pertencente à igreja franciscana do Colégio de São Boaventura em Sevilha nos ajuda a compreensão do programa iconográfico carioca. Trata-se de uma fonte com quatro bicas e duas taças, onde foram postos cinco pássaros a beber. A legenda da gravura diz: “bebi água da sabedoria salvadora”; Sebastian que, considera altamente significativo a conjunção destes três elementos simbólicos, “a fonte, a água e os pássaros”, interpreta estas aves como símbolos intermediadores das relações estabelecidas entre o céu (de onde vem a água salvadora) e a terra (SEBASTIAN. 1985. p.291). As semelhanças da temática daquela gravura com a fonte de Valentim são inegáveis, e pode-se supor que, pela constância com que este tema aparece entre os franciscanos que tenha sido um motivo iconográfico especialmente acalentado por esta ordem. Contudo, o programa da fonte das Saracuras de Valentim é mais sofisticado que o da gravura de Sebastian, pois mais complexo, como veremos abaixo.

Valentim dispôs a fonte com o obelisco e a cruz no centro de um conjunto cercado por quatro outras fontes, compostas estas com uma face interna - uma pequena bacia - e outra externa ao círculo. Trata-se, sem dúvida, como já deixamos vislumbrar, de uma representação dos quatro rios do Paraíso Terreal, conectados com um manancial celeste. Aqui, constata-se na obra de Valentim um propósito místico e alegórico, propósito, entretanto, que não deve encobrir um fato fundamental, de que esta discussão era corrente à época no mundo português, e corrente não apenas nas discussões de caráter teológico, mas também nas científicas. Os contemporâneos de Valentim tinham como hábito discutir conjuntamente ciência e teologia e não se negavam, nos seus tratados científicos, a discorrer sobre a localização nos tempos idos, do Paraíso Terreal. Manuel Álvares, oratoriano, um dos cientistas que os historiadores de hoje identificam com a ilustração portuguesa, defendia em sua obra mais conhecida, junto às teorias de Copérnico e de Newton, que o Paraíso Terreal situara-se nos tempos idos na Armênia maior e que os quatro rios do paraíso tinham lá a sua origem: “todos concordam em que o Tigre, e o Eufrates nascem na Armênia; (...) ambos aqueles rios dimanavam antigamente de uma Fonte comum; (...) A maior dificuldade está em designar na Armênia as origens do Phizon, e Gehon: esta dificuldade porém facilmente se desvanece, dizendo com Calmet, que o Phizon he o rio Phazis, e que o Gehon he o Araxis”. (ALVARES. 1762. p.260).

Na fonte de Valentim, os quatro rios do Paraíso, cada um deles voltado para um dos quatro pontos cardeais, representam junto com as escadas intercaladas de quatro degraus cada, as quatro partes do mundo material, cada uma delas banhada por um rio que emanava de uma fonte comum e celeste - a central. São cinco, portanto, as fontes, e pode-se supor que cada uma corresponda a uma das cinco chagas do Senhor. Em planta baixa vê-se uma fonte central e quatro periféricas, e onde pode se ver, com um pouco de imaginação, um Cristo inscrito tal como no Homo ad circulum dos neoplatônicos florentinos. Do Cristo inscrito de Valentim, brotava uma fonte do meio do corpo e quatro nas extremidades de cada membro. De todas as chagas do Senhor, a produzida por Longinus no costado foi considerada pela Igreja a mais santa de todas (SEBASTIAN. 1981. p.424), por encontrar-se justamente no tronco, e digna, portanto, de ser a mais venerada e assim simbolizada pela fonte central, enquanto as quatro chagas dos membros que mais de um autor considerou como mananciais contínuos de sangue do Cristo, foram simbolizadas no chafariz de Valentim pelas fontes periféricas.

Se a Legenda Dourada de Voragine pode ser identificada como uma provável fonte para o tema da taça e da lança na fonte de Valentim - e não era de todo impossível ter-se acesso a ela no Rio de Janeiro do século XVIII, pois exemplares da obra de Voragine foram encontrados na biblioteca do Colégio dos jesuítas no morro do Castelo (AUTO DE INVENTÁRIO. 1755) - é nela também que se pode encontrar o desenvolvimento da lenda, o que nos explica a proximidade de temas como o Paraíso Terreal, a cruz de Cristo e a fons sapientiae: Ainda segundo a Legenda, a cruz de Cristo teria sido feita de madeira proveniente da árvore da ciência do bem e do mal, a qual, por algum caminho tortuoso, teria chegado até o Gólgota (VORAGINE. 1993. p.203).

É evidente que a idéia central deste relato - baseada na tradicional exegese alegórica das escrituras - apóia-se na intenção de vincular a Queda com a Redenção, o Antigo com o Novo Testamento, assim como na idéia de que Adão seria uma prefiguração do Cristo, pois seriam os dois únicos seres humanos feitos diretamente por Deus, o primeiro vindo à Terra para perder os homens e o segundo, para salvá-los. Segundo Réau, os maiores divulgadores desta lenda, através de programas iconográficos encomendados para suas igrejas e claustros, foram justamente os franciscanos, ordem, segundo ainda este autor, especialmente afeita à temática porque foi a guardiã do Santo Sepulcro e as suas igrejas costumavam estar sob a advocação da Santa Cruz (RÉAU. 1997. p.524). Ora, considerando-se que o chafariz em questão era destinado a uma ordem segunda franciscana, é absolutamente viável supor-se que a temática iconográfica deste claustro tenha sido sugerida a Valentim para ficar de acordo com a tradição. É sabido que o comitente costumava interferir no programa iconográfico da obra que encomendava.

Esta obra de Valentim indica, portanto, a intenção do autor em, no claustro da Ajuda, realizar uma representação do Paraíso Terreal, elaborando um conjunto com uma Fonte da Vida central e quatro fontes periféricas relacionadas aos quatro rios do Paraíso. Intenção que, se por um lado, é a mais corrente possível, já que todo claustro conventual em última instância remete ao Paraíso Terreal, por outro, fica na forma peculiar do artista, ao abordar o problema; a diferenciação deste claustro para os demais. Esta fonte de Valentim apresenta-se, dentre todas as obras do artista como a de caráter místico mais complexo e hermético, sem dúvida, contribuiu para tanto a proximidade que franciscanos tinham com o neoplatonismo medieval. Pela complexidade da arquitetura e de seu simbolismo, o resultado é uma obra notável, no espectro do conjunto formado pelas fontes de claustros conventuais ainda existentes na América.

3. NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
ALVARES, Pe. Manuel. Historia da creaçao do mundo conforme as ideas de Moizes, e dos filozofos: ilustrada com hum novo siftema, e com varias notas, e dissertaçoens. Porto, Officina de Francifco Mendes Lima, 1762.
ARAUJO, Mons. Jozé de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das provincias annexas á jurisdição do Vice-rei do Estado do Brasil; (...) Rio de Janeiro, Typografia de Silva Porto, 1822.
AUTO DE INVENTÁRIO e avaliação dos livros achados no Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro e seqüestrados em 1775 in: Revista do IHGB. out-dez de 1973. Vol. 301.
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. São Paulo : Record, [1983].
CORREA, Magalhães. “Terra Carioca - Fontes e Chafarizes”. Revista do IHGB. vol.170, 1935.
GOMBRICH, E.H. Symbolic images; studies in the art of Renaissance II. Oxford, Phaidon, 1972.
MARIANNO FILHO, José. Os três chafarizes de Mestre Valentim. Rio de janeiro : [Construtora Andrade Gutierrez], 1943.
MOTT, Luis. “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu” in: NOVAIS, Fernando (org.) História da vida privada no Brasil 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia da Letras, 1997.
PANOFSKY, Erwin. “El movimiento neoplatónico y Miguel Angel” in: Estudios sobre iconologia. Madrid : Alianza Editorial, 1984.
PEREIRA, Paulo (dir.) História da arte portuguesa. (Lisboa) : Círculo de Leitores, 1995. Vol. I.
REAU, Louis. Iconografía del arte cristiano. Barcelona, Serbal, 1997. Tomo 2, Vol. 2 e 4.
SEBASTIAN, Santiago. “A edição espanhola do ‘Teatro Moral da Vida Humana’ e sua influência nas artes plásticas do Brasil e Portugal” in: AVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo : Perspectiva, 1997.
___. Contrarreforma y barroco. Madrid : Alianza Editorial, 1981.
SERRÃO, Vitor. “As tábuas do Santuário do Bom Jesus de Valverde: uma encomenda de D. Henrique ao pintor Gregório Lopes” in: Estudo da pintura portuguesa: oficina de Gregório Lopes. [Lisboa], Instituto de José de Figueiredo, 11-12 de fevereiro de 1999. Actas.
STASTNY, Francisco. “The university as cloister, garden and tree of knowledge”. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes. London, volume 46, 1983.
UMA DATA de festa para os católicos do Rio de Janeiro; bicentenário do Convento de N. Sra. da Ajuda. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 28.05.1950.
VORAGINE, Jacobus. The golden legend: reading on the Saints. Princeton University, 1993. Vol. I.
Créditos iconográficos:
Fig. 02. Augusto Malta. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).
Fig.03. Desenho do autor.
Fig. 04. Augusto Malta. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).
Fig.05. Técnicos do IPHAN. Arquivo Noronha Santos (IPHAN).

2 comments:

Clara Luiza Miranda said...

belo texto Nelson, pretendo voltar a Lê-lo ainda

Unknown said...

Olá Nelsinho. Parabéns. Muito chique encontrar esse texto de alto nível na internet.
Bj.
Lola