Saturday, May 06, 2006

RESTAURAÇÃO E ÉTICA: história e teoria.

autor: Nelson Pôrto Ribeiro.
(publicado originalmente in: Evelyn Furquim Werneck Lima et alii (org.). Cultura, patrimônio e habitação. Rio de Janeiro : 7Letras, 2004. pp. 43-48. ISBN: 85-757-128-0).

Cada vez aparece de forma mais evidenciada que restauração não é uma ciência, ao menos uma ciência exata. O fato de que o ato de restaurar venha quase sempre acompanhado de uma forte cooperação com ciências exatas como a química, não nos deve iludir a respeito do estatuto ontológico próprio da restauração. Enquanto um ramo do conhecimento transdisciplinar - e transdisciplinar no que isto tem de mais amplo, pois a restauração junta não apenas ramos do conhecimento afins como a arqueologia e a história, mas ramos do conhecimento díspares e distintos como a ciência química e a história da arte - é que os problemas que se apresentam para o restaurador, mais do que obstáculos técnicos são problemas conceituais. E esses problemas conceituais, me parecem, estão sempre relacionados de alguma forma aquilo a que eu vou chamar do paradoxo germinal da restauração: paradoxo este fundamentado no fato de que Camilo Boito, o pai do restauro científico no século XIX, ensaiou de compatibilizar duas posturas absolutamente incompatíveis entre si; o respeito ao documento histórico proveniente de Ruskin, com a oportunidade de restaurar, originária da postura de Viollet-le-Duc.

Ora, no embate entre Ruskin e Viollet é tarefa árdua adaptar os ideais de respeito à pátina do tempo procurando-se ao mesmo tempo a perenidade do monumento – que é o objetivo de todo ato restaurador. Ruskin tinha ciência desta impossibilidade e a combatia; querer restaurar um monumento, afirmava ele, significa “a destruição a mais total que uma construção possa sofrer”. Dessa forma, não restaria enquanto destino para o monumento histórico senão a ruína e a desagregação progressiva.

Contudo, parte dos teóricos que se debruçam sobre a história da restauração científica no século XIX parece não se dar conta deste paradoxo e tendem a identificar as duas posições como duas opções distintas de se enfrentar o ato do restaurar; o que a meu ver é equivocado, Ruskin jamais poderia chefiar uma corrente de restauração simplesmente porque ele era contra toda e qualquer restauração. Não é correto acreditar que esta posição radical fosse apenas reação a uma prática fortemente intervencionista como a que estava em moda à época. A posição de Ruskin me parece, era firmemente radicada no respeito ao documento histórico, ainda que ele nunca tenha formulado explicitamente dessa forma e que a sua postura romântica de culto as ruínas encobrisse este escrúpulo historiográfico com asserções vagas do tipo de que os “monumentos arquitetônicos são impregnados de vozes do passado”. Não apenas, mas é suficientemente claro que parte considerável destas “vozes do passado” seriam as informações documentais das quais o monumento é prenhe. E não sem sentido a posição ruskiniana interditava toda e qualquer restauração, pois a restauração em si, qualquer que seja ela, altera a historicidade do documento.

A rigor não é possível conciliar a autenticidade da obra de arte com a sua preservação eterna, por um motivo muito simples, a autenticidade da obra de arte – tanto artística quanto histórica – em última instância está assentada na sua matéria – que é perecível - e não na sua forma – que seria eterna. Não por outro motivo uma cópia por mais perfeita que seja jamais substitui o original, ela não tem aquilo a que Walter Benjamin designou como sendo a aura da obra de arte. Ora, a restauração para recuperar a forma violenta a matéria da obra artística, cada restauração acaba sendo um atrito na aura, e assim esta última vai, paulatinamente, restauração após restauração, esvaindo-se à medida que a historicidade da obra se perde.

Aqui, e isso é importante que seja dito, não se encontra uma defesa implícita da posição de Ruskin, ao contrário, tal como Boito eu prefiro um amigo vivo usando uma perna de pau do que um amigo morto de gangrena. Mas já começam a se apresentar os princípios de uma posição ética em relação ao monumento. Vejam o dilema que já de imediato se apresenta para o restaurador que pensa como eu, ele vive um paradoxo, porque de início ele é contra a restauração, ou pelo menos a favor de se evita-la até que esta seja de fato imprescindível. Se ele for coerente com essa visão ele deveria inclusive defender um procedimento de conservação contínuo do monumento para afastar ao máximo o momento daquilo a que nós chamamos de uma “intervenção de restauro”, contudo, ele vive de restauração, a restauração é o seu ganha pão. Como conciliar ética com o direito que todo ser humano tem de batalhar honestamente pelo seu trabalho? Alguém poderia refutar, argüindo que a função de conservador faz parte da profissão de restaurador, e que assim sendo, quando propugnasse pela conservação em detrimento da restauração o restaurador não estaria retirando trabalho da sua esfera, apenas modificando a natureza desse trabalho. O que não deixa de ser uma verdade parcial. No campo da restauração dos objetos artísticos é fácil entendermos que ninguém daria a função de remover o verniz deteriorado de uma valiosa pintura a óleo que não a um restaurador experiente, contudo, no campo da restauração de monumentos o mesmo não se dá; a caiação de uma fachada, a troca de uma telha rachada, a limpeza de uma calha, a impermeabilização de uma cimalha, não são serviços especializados de restaurador, e, venhamos e convenhamos, bastaria, de uma forma geral, que estes poucos serviços fossem refeitos com uma certa periodicidade em nossos monumentos arquitetônicos para que a necessidade de uma restauração, que em geral aparece de dez em dez anos depois que o monumento é restaurado pela primeira vez, só voltasse a aparecer quando menos, após cinqüenta anos.

Não é fácil convencer nossas autoridades desta simples evidência - elas que são as maiores guardiãs dos nossos monumentos históricos - afinal, e esse é um outro problema ético que surge, obra de conservação não rende dividendos políticos enquanto a obra de restauração sempre possibilita ao administrador público a possibilidade de um evento de re-inauguração. Além disso, a restauração enquanto operação social é extremamente lucrativa em termos do discurso que ela possibilita, pois ela comporta a possibilidade de todo o arsenal do proselitismo extremamente atual do “politicamente correto” - e aqui mais uma vez não me entendam mal, eu não sou contra o “politicamente correto”, eu sou contra que se faça proselitismo disso; que se apele para o auto-sustentável, para a economia dos bens naturais, para a preservação da memória coletiva quando na verdade o único interesse verdadeiro é o número de votos que poderá ser capitalizado no futuro imediato, enquanto o monumento arquitetônico tem o seu futuro longínquo comprometido pelo estado de degradação que propositalmente o deixaram chegar objetivando-se unicamente a uma restauração espetacular - e a restauração quanto mais espetacular for, mais risco oferece ao futuro do monumento. E aqui eu me pergunto, até que ponto nós restauradores não somos parcialmente responsáveis por esta política cultural suicida: em parte por miopia, em parte por comodismo, em parte por oportunismo.

Vejam por exemplo o papel de alguns arquitetos e urbanistas que a princípio deveriam estar atentos aquilo a que Aldo Rossi chamou de necessidade da preservação da identidade cultural de uma cidade, e que, ao contrário, fazem coro com os detratores do patrimônio invocando os direitos do artista à criação. Defendem de forma difusa a necessidade de inovações urbanas e as dialéticas da destruição que sempre fizeram com que as cidades se sucedessem a si mesmas, e que ao longo dos séculos, novos monumentos viessem a substituir os antigos. Não querem ter a sua área de atuação restrita à periferia dos centros históricos ou então serem condenados a construírem pastiches (CHOAY. 2001. p.16). Não é lógico, ao menos para eles, que lhes seja negado o direito que os arquitetos seus predecessores tiveram. Sentem-se não apenas no direito, mas imbuídos do dever de renovar a cidade. Aqui, novamente, aparece aquela auto-suficiência com veios de totalitarismo tão comum a alguns arquitetos, em especial aqueles com pretensão à genialidade. Um bom exemplo deste ‘veio totalitário’ do arquiteto é o acontecido recentemente com o Scala de Milão, onde um projeto do arquiteto Mario Botta simplesmente botou abaixo todo o prédio a partir da boca de cena da platéia. Segundo a Revista Domus (março de 2003), os milaneses perplexos têm-se perguntado como isso teria sido permitido, lastimando o fato de que o ‘seu’ teatro estaria arruinado para sempre.

É oportuno chamar a atenção para o fato de que vivemos um momento histórico distinto e que as próprias noções da história de um povo e de respeito documental, profundamente reformuladas no século XIX – e que em parte explicam Ruskin – já não permitem que tenhamos a mesma posição de nossos antepassados frente ao legado histórico arquitetônico, e que os procedimentos adotados até então não podem ser invocados enquanto direitos adquiridos, pois no campo da evolução social estes direitos não existem - se assim o fosse teríamos que conviver até os dias de hoje com os proprietários de escravos.

Este talvez seja o grande trunfo da idéia de patrimônio cultural, o de permitir pela primeira vez o conceito de uma propriedade social de caráter cultural - não mais um edifício público, um parque ou uma via de circulação coletiva, mas uma propriedade privada que adquire um especial caráter cultural. Observem que talvez seja, dentro da legislação da propriedade privada fundiária a primeira vez na história, que de forma regular – ou seja, em caráter não excepcional tal como quando aconteciam as grandes intervenções urbanísticas – que uma ética coletiva se sobrepõe ao interesse individual. Não por outro motivo é nas sociedades européias com maior enfoque pelo bem estar social que a legislação patrimonial encontra-se mais desenvolvida, enquanto na sociedade da predominância do capital e do individualismo por excelência – a América do norte – a idéia de um patrimônio monumental comum a ser resguardado ainda encontre tanta resistência a ser adotada e seja encarado como um atentado à liberdade do cidadão. Embora, verdade seja dita, a intelectualidade deste país nem toda partilha desta opinião e foi justo um antropólogo americano o primeiro a defender a original idéia de que através da intermediação do turismo de arte, o patrimônio representado pelas edificações constituirá, num futuro próximo, “o elo federativo da sociedade mundial” (CHOAY, 2001, p.17).

A construção de uma teoria do restauro que não atente para o paradoxo insuperável existente no momento do surgimento do restauro ‘científico’ no século XIX corre o risco de adotar procedimentos baseados em um campo teórico desenvolvido, mas que não se apresentam operacionais na prática. Mesmo uma teoria bem estruturada e completa como a de Cesare Brandi – o teórico de restauração mais influente das últimas décadas – não consegue fugir deste paradoxo: embora procurando realçar a transitoriedade, parcialidade e relatividade de qualquer intervenção no monumento histórico por ser sempre marcada pelo clima cultural no qual é realizada, sua teoria não consegue superar esta contradição, e ao mesmo tempo em que busca através do processo de restauração os princípios estéticos - remoção de intervenções erradas e inapropriadas - procura conciliá-los com os princípios históricos - não destruir os traços da passagem do tempo e das intervenções humanas no monumento (BRANDI. 1995). O fato de Brandi não ter sido um arquiteto explica o fato de que, em sua teoria, as exigências estéticas acabassem sempre predominando. Ou, nas palavras de González, uma disparidade que ocorre entre as necessidades do monumento arquitetônico e os objetivos da restauração efetuada, de forma a mostrar uma “incompreensão da própria essência do monumento, reduzida pelo pensador italiano a uma obra de arte” (1996. p.21).

É possível que o erro de toda grande teoria resida justamente na sua intenção de ser ‘grande’. A verdade é que já em pleno século XXI, depois das experiências da pós-modernidade ocorridas, eu me pergunte a respeito da adequação de teorias totalizadoras com suas raízes no iluminismo, e prefira, junto com Bruno Zevi (2002), pelo menos nessa questão, dizer não ao iluminismo e suas teorias porque propugnam concepções universais e absolutistas.

A teoria da restauração contemporânea continua mantendo assim, como uma utopia ontológica, a intenção de conciliar Ruskin com Viollet le Duc. Talvez fosse mister reconhecer que o paradoxo sobre o qual se funda esta teoria não tem solução. Talvez o simples reconhecimento da existência deste paradoxo insuperável e dos nossos limites na tentativa de uma elaboração de uma teoria definitiva, já seja um primeiro passo andado para que deixemos de lado os “parti pris”, as posições de princípio, as verdades absolutas, e que nos dignemos não apenas a ouvir nossos colegas com posições distintas à nossa mas também a ouvir o monumento. Ruskin tinha razão; "o monumento fala", trazendo à tona não somente as vozes do passado, mas também as suas necessidades. O monumento tem uma vocação e respeitá-lo é deixar esta vocação se expressar.

Aqui, voltamos aquela idéia inicial da restauração como o campo por excelência da transdisciplinaridade. O trabalho conjunto entre profissionais de distintas áreas deve ser visto não apenas como exigência das peculiaridades da ciência do restauro, mas também como exercício de tolerância e humildade. Não existem regras fixas, não é possível um principio único. Talvez seja por isso que o primeiro princípio por direito de antiguidade, tido como universal na teoria do restauro, o princípio de reversibilidade, seja tão falado e tão pouco seguido. Qualquer um que trabalhe com a restauração de obras de arte edificadas sabe o quanto é difícil ser fiel a este princípio, sobretudo se é necessário uma intervenção estrutural na edificação. Intervenções estruturais – com exceção dos escoramentos emergenciais – dificilmente são reversíveis.

Em contrapartida, a experiência tem demonstrado que dois outros princípios atingem melhor operacionalidade, e recobrem de forma adequada o respeito devido ao documento histórico; são eles o princípio de mínima intervenção e o princípio de compatibilidade. O primeiro deles opõe-se à idéia de superproteção ainda hoje largamente difusa e que é fruto “..da ilusão de que se trabalha objetivando a eternidade do monumento quando superdimensiona-se os elementos de reforço ou os elementos protetivos” (TORRACA. 1984. p.174). O segundo princípio, o de compatibilidade, baseia-se na procura de um comportamento físico, químico e mecânico, compatível para as estruturas mistas derivadas da aplicação dos modernos produtos sobre os materiais antigos.

Ora, esta reviravolta no enfoque teórico da restauração é decorrência sem dúvida do deslocamento da condução dos problemas, proporcionado pelo trabalho transdisciplinar, de forma a se poder dizer, como o faz o prof. Torraca, que a interação do trabalho de arquitetos, historiadores e cientistas é tão profícua e capaz de soluções tão inovadoras, que doravante o campo da restauração tende a ser dominado por tecnólogos de formação variada.


BIBLIOGRAFIA.
BRANDI, Cesare. Teoría de la restauración. Madrid: Alianza,1995.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001.
GONZÁLEZ, Antoni. "Falso histórico o falso arquitectónico, cuestión de identidad". Loggia: arquitectura & restauración, Valencia, ano 1, n.1, p.16-23, 3.quadri. 1996.
TORRACA, Giorgio. "Materiali cementizi e tecnologie: scelta dei materiali in funzione del tipo d’intervento". In: CARBONARA, G. (curador). Restauro e cemento in architettura 2. Roma, 1984.
ZEVI, Bruno. Arquitetura e judaísmo: Mendelsohn. São Paulo: Perspectiva, 2002.

2 comments:

Jacqueline Emerich said...

Olá Nelson!

Estou estudando pra um concurso na área de patrimônio histórico e acabei achando seu blog no meio das minhas pesquisas.

Gostei do seu texto. Foi bem esclarecedor pra mim. Será que você pode me indicar um material que aborde de maneira geral os nomes mais relevantes quando o assunto é restauração e patrimônio histórico?

Você algum material digital pra me repassar? Ficarei mto grata!

Abraços,
Jacqueline.

Unknown said...

Segue alguns autores: percursores da restauração. Camilo Boito, Viollet- le-duc, Cesare Brandi, Ruskin.